quarta-feira, 20 de abril de 2016

Gordura saturada & derrame cerebral




Quem me conhece sabe que a história que envolve a relação patológica entre gordura saturada e doenças cardiovasculares é um dos meus tópicos favoritos. Talvez por causa de todas as “controvérsias” que cercam o tema; mas acredito que o tema me atrai ainda mais pela simples curiosidade.

O interesse por esse assunto, em um grau um pouco mais superficial, surgiu enquanto eu ainda estava na graduação: eu queria entender melhor a relação entre as gorduras da dieta e o seu impacto nos níveis de colesterol sanguíneo. Eu não conseguia compreender por que o consumo de gorduras saturadas, especificamente, levava ao aumento nos níveis de colesterol enquanto que a ingestão de gorduras insaturadas, principalmente poli-insaturadas, levava à redução nos mesmos marcadores. Não parecia fazer muito sentido.

Eu até aceitava a ideia; de maneira um pouco relutante, mas aceitava. Só que a inquietude só iria de fato cessar quando eu descobrisse o porquê dessa regulação oposta dos níveis de colesterol por diferentes tipos de gorduras.

Então fui atrás do mecanismo fisiológico que explicava por que as gorduras saturadas levam ao aumento nos níveis de colesterol, especialmente o LDLc (mas também o HDLc). E eu acabei descobrindo*  os detalhes não vêm muito ao caso agora, mas pretendo expandir essa discussão quando eu (finalmente) for escrever em mais detalhes sobre toda a história da relação entre gordura saturada e doenças cardiovasculares.


*Hoje (há muito tempo, na verdade) podemos afirmar categoricamente que o consumo de gorduras saturadas, de maneira geral, realmente induz o aumento em todos os tipos de colesterol sanguíneo, assim como a maior ingestão de gorduras poli-insaturadas também gera uma diminuição nesses parâmetros — principalmente em ambientes experimentais controlados. Esses são fatos, mesmo que em maior ou menor magnitude, dependendo da individualidade de cada um. E essas constatações podem parecer controversas, principalmente se acreditarmos que o colesterol sanguíneo, especialmente o LDLc, tem uma relação direta com o desenvolvimento de doenças cardiovasculares (dica: não tem).


Depois que eu descobri como a gordura saturada regulava de forma “negativa” os níveis de colesterol, meu interesse pelo assunto diminuiu um pouco. Afinal, a compreensão do mecanismo foi, naquele momento  uma vez que eu aceitava que níveis elevados de LDLc apresentavam uma relação causal com o desenvolvimento de doenças cardiovasculares , o que faltava para eu realmente aceitar que o maior consumo de gordura saturada de fato estava relacionado ao maior risco de doenças cardiovasculares.

Um tempo depois, à medida que fui me interessando cada vez mais pela ciência da nutrição, meu conhecimento e capacidade crítica foram aumentando (o que é natural quando ganhamos experiência em qualquer área), e isso fez com que novas dúvidas surgissem.

Eu me deparei, por exemplo, com evidências científicas que questionavam a relação entre o consumo de gordura saturada e o desenvolvimento de doenças cardiovasculares. Se tais evidências estivessem apontando para a direção certa, isso significaria que a associação entre colesterol sanguíneo (especialmente o LDLc) e doenças cardiovasculares também precisaria ser questionada  uma vez que o mecanismo pelo qual a gordura saturada levaria ao aumento no risco cardiovascular seria justamente por meio do aumento nos níveis de colesterol.

E por que eu decidi contar toda essa história? Porque um novo estudo de revisão sistemática e meta-análise sobre a relação entre o consumo de gordura saturada e o risco de derrame foi recentemente publicado.

Então vamos lá.


Gordura saturada x Derrame: a verdadeira relação

Nesse novo estudo, publicado em março de 2016, o objetivo foi muito simples: determinar a associação entre consumo de gordura saturada e o risco de derrame.

Essa relação já foi pesquisada antes por vários estudos individuais e, inclusive, por um estudo de meta-análise anterior, publicado em 2010. O diferencial desse novo trabalho, principalmente em relação à última meta-análise, é a maior quantidade de evidências que surgiu entre 2010 e o presente momento: pelo menos oito novos estudos foram publicados desde então.

E como foi feita a análise? Todos os estudos já publicados que avaliaram a relação entre a ingestão de gordura saturada e o risco de derrame foram avaliados para determinar se, juntos, existe algum tipo de associação entre as duas variáveis.

E não é que foi encontrada uma associação?

No caso, uma associação inversa. Isso quer dizer que o maior consumo de gordura saturada foi associado a um menor risco de desenvolvimento de derrame. Nas subanálises, verificou-se ainda que a maior ingestão de gordura saturada apresentou relação inversa com diversas outras variáveis: derrame fatal; tempo prolongado de acompanhamento dos estudos (≥ 14 anos); ambos os tipos de derrame, ou seja, isquêmico e hemorrágico.




Ao observamos a meta-análise mais antiga, publicada em 2010, é possível notar que, apesar de não ter sido verificada uma associação significativa do ponto de vista estatístico, os resultados já apontavam para essa relação inversa entre o consumo de gordura saturada e o desenvolvimento de derrame, com um risco relativo de 0,81 (Intervalo de Confiança = 0,62–1,05). Esse valor de risco relativo equivaleria a uma redução de 19% no risco de derrame (se tivesse sido observada significância estatística nesse estudo de 2010).

Na verdade, essa relação inversa entre gordura saturada e derrame já havia sido verificada desde o estudo de Framingham, que foi um marco histórico para as pesquisas que envolvem fatores de risco cardiovascular. Naquela época, o maior consumo de gordura saturada estava associado a uma redução de 10% no risco de derrame:




Esses resultados lembram, ainda, que a ingestão de laticínios integrais, mas não de leite e derivados desnatados, também foi recentemente associada ao menor risco de derrame fatal em um estudo holandês publicado em 2015.

Além disso, outros trabalhos de meta-análise já verificaram resultados muito semelhantes para a relação entre gordura saturada e o risco de doenças cardiovasculares. Os trabalhos de Siri-Tarino et al. (2010), Chowdhury et al. (2014) e de Souza et al. (2015) demonstraram que o consumo de gordura saturada não está associado ao desenvolvimento da doença cardiovascular mais comum de todas: o infarto cardíaco.

E por que eu menciono essa relação entre gordura saturada e infarto? Porque o derrame e o infarto são essencialmente a mesma doença. A grande diferença é que o processo de aterosclerose  ou seja, a injúria endotelial e a consequente formação de coágulo nos vasos sanguíneos  acontece em artérias diferentes, e por isso vai, em última instância, afetar órgãos distintos: cérebro (derrame) e coração (infarto).

Em outras palavras, seria extremamente contraditório verificar ausência de associação para uma doença (derrame) e uma associação positiva para a outra patologia (infarto). Assim, o fato de não haver associações em sentidos contrários para essas doenças é mais um ponto a favor da inexistência de relação direta entre o consumo de gordura saturada e o desenvolvimento de doenças cardiovasculares.


Considerações finais

Algumas pessoas podem questionar: “Esses são estudos de coorte. Não teríamos que embasar conclusões sobre causa e efeito a partir de estudos de intervenção (ensaios clínicos)?”. E eu concordo que esse é um ponto importante a ser levantado, mas podemos tirar conclusões importantíssimas sobre essa relação apenas utilizando estudos observacionais.

Eu explico.

Imagine que lá no começo dos estudos da relação entre colesterol sanguíneo e doenças cardiovasculares não tivesse sido observada qualquer associação entre as variáveis. Imagine também que esse fosse um resultado que aparecesse de forma consistente entre os estudos; ou seja, 3 ou 4 trabalhos seguidos, por exemplo, mostrando que não havia relação entre colesterol sanguíneo e doenças cardiovasculares. Assim, considerando que não tivesse sido observada nenhuma associação entre as variáveis, você acha que os pesquisadores iriam avançar e tentar demonstrar uma relação causal (por meio de ensaios clínicos) entre elas? A resposta é um simples não.

A chance de uma associação neutra entre duas variáveis corresponder a uma relação de causa efeito entre elas é muito pequena. Se a associação for inversa, como é o caso da relação derrame-gordura saturada, a probabilidade é praticamente zero. Em outras palavras, a associação entre duas variáveis em estudos observacionais precede a possível causalidade entre elas em estudos de intervenção.

Portanto, considerando a associação inversa, podemos afirmar com praticamente 100% de certeza que a gordura saturada não apresenta relação causal com o maior risco de desenvolvimento de derrame. E quem sabe ela, na verdade, não seja protetora?



24 comentários:

  1. como sempre. ótimo artigo. parabéns.

    ResponderExcluir
  2. excelente artigo. Como é difícil quebrar esse mito da gordura saturada...Acredito que ele se deva às informações veiculadas pelos meios de comunicação que mais contribuem para reforçá-lo.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Obrigado, Carlos!

      Realmente não é fácil, mas felizmente as coisas estão melhorando. Tanto é que nos últimos anos alguns textos, em revistas de grande circulação, têm sido publicados no sentido de desmistificar o papel da gordura (saturada, principalmente) na saúde.

      É claro que ainda existem alguns meios transmitindo informações não condizentes com o que a ciência realmente mostra, mas aos poucos as coisas vão mudar!

      Excluir
  3. Muito bom amigo. Irei postar no face com os devidos créditos! Continues.
    PS, Pretendo levar uma cópia para minha endócrino ler por ocasião da minha revisão anual, mais adiante.

    ResponderExcluir
  4. Hey! Adorei seu blog. Passei algumas boas horas da minha tarde aqui lendo as informações. :) Parabéns pelo trabalho, realmente muito interessante e me ajudou a reforçar alguns conceitos de saúde/fitness que eu quero pra minha vida.

    ResponderExcluir
  5. Que blog fantástico!!! Aguardando ansiosamente novos posts!

    ResponderExcluir
  6. Muito bom! Vc tem interesse em publicar algo sobre a coenzima Q10?

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Olá, Sam.

      É um assunto interessante. Coenzima Q10 relacionada a algum tema específico?

      Excluir
  7. Ecxelente texto, muito esclarecedor !!! Aproveitando a visita ao blog, vc saberia dizer se na dieta low carb há perda de massa muscular, e se pode usar adoçantes nessas dietas low carbs ? Obrigado, e são muito esclarecedores seus textos.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Olá, Pedro.

      A perda de massa muscular depende mais da restrição calórica, e da velocidade de perda de peso, do que da composição de carboidratos ou gorduras.

      Porém, os carboidratos possuem certa ação "poupadora" de massa magra. Por isso, quando a perda de peso está acontecendo com uma dieta low-carb, é bom dar uma caprichada na proteína para ajudar a manter o máximo possível de massa magra. O bom é que, nessas dietas, a ingestão de proteína normalmente já aumenta de forma natural, e é por isso que, via de regra, a perda de massa muscular em dietas low-carb é a mesma quando comparadas a outras dietas.

      De qualquer maneira, a melhor forma de manter (ou até ganhar) massa magra durante a perda de peso é por meio da prática de exercícios de força, como CrossFit ou musculação. Por outro lado, se for uma dieta low-carb sem o objetivo de perda de peso, a perda de massa muscular certamente não vai acontecer.

      Em relação aos adoçantes, eles podem sim ser usados. Entretanto, na minha opinião, considerando os potenciais efeitos nocivos que os adoçantes podem trazer, o ideal seria evitá-los.

      Excluir
  8. Esses seus artigos sobre gordura saturada são muito bons!
    Eu acho muito triste que vá pessoas para televisão omitir ou até mesmo mentir sobre gorduras saturadas.
    Um bom exemplo é o chocolate, é muito bizarro, tanto nas redes sociais quanto na televisão, supostos especialistas condenam o chocolate branco sob o argumento de ter muita gordura saturada e ser mais calorico, e dizem que o chocolate amargo é bom. É um argumento totalmente contraditório uma vez que ambos são ricos em gordura saturada (aliás, o chocolate 100% cacau, aquele que é extremamente amargo, feito apenas a amendoa íntegra do cacau, é o tipo de chocolate com mais gordura saturada de todos, afinal a amendoa do cacau pura chega a ter 50% de manteiga de cacau, e maior parte da manteiga de cacau é constituida de acido estearico e palmitico, que são saturados) fora que a quantidade de calorias é praticamente a mesma. Dizem também que só o chocolate amargo tem beneficios para o coração, oque não é verdade, existem estudos mostrando que tanto o chocolate amargo quanto o branco apresentaram beneficios significativos para o coração em testes realizados com voluntarios e pacientes (e coincidentemente, a grande semelhança entre chocolate amargo e chocolate branco é o fato de serem ricos em manteiga de cacau, que é rica em gordura saturada) Mas esses especialistas simplesmente omitem essa informação.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Olá.

      Em boa parte dos casos, não acredito que os profissionais que falam mal do chocolate o fazem de propósito. Imagino que isso acontece bastante simplesmente por uma falta de conhecimento, e de uma extrapolação inconsciente das evidências para que estas se encaixem com ideias pré-concebidas (viés de confirmação).

      O chocolate por si só não é problemático, nem mesmo o ao leite ou o branco. Claro, se consumido em excesso eles podem levar a prejuízos, assim como praticamente qualquer alimento.

      Porém, cabe uma ressalva: os chocolates comuns no Brasil, que na sua maioria incluem o chocolate ao leite e o chocolate branco, são quase todos produzidos com gordura hidrogenada. A quantidade de manteiga de cacau, que não seria prejudicial e até mesmo potencialmente benéfica, acaba ficando muito reduzida.

      É por isso que, no geral, eu não acredito que os chocolates comuns comercializados no Brasil devam ser "inocentados". Pelo menos não enquanto eles forem produzidos com gordura hidrogenada e tiveram outros aditivos potencialmente prejudiciais em sua composição.

      Isso provavelmente é feito para tornar o produto mais barato para quem o produz. Mas isso não é justificativa. Em muitos lugares do exterior, os chocolates são produzidos com gordura do leite e manteiga de cacau, sem gordura hidrogenada. É possível fazer certo: basta os produtores quererem. Felizmente os chocolates amargos, mesmo os produzidos no Brasil, possuem apenas manteiga de cacau como sua fonte de gordura.

      Obrigado pela leitura e contribuição!

      Excluir
    2. Verdade isso, eu acho que a gordura hidrogenada deveria ser proibida, imagino que isso ajudaria a resolver o problema. Acho que o unico motivo de não ser é porque é uma opção muito barata e então eles lucram mais. A proposito, eu sempre confiro os ingredientes no rótulo e a tabela nutricional para ver se não há esse tipo de gordura, você acha que é confiavel? Ou é possivel que eles mintam? Se não me engano a alguns anos atras saiu um estudo onde pesquisadores pegaram produtos de super mercado que diziam 0% gordura trans no rótulo, e após fazer analise encontraram quantidades consideraveis de gordura trans.

      Excluir
    3. Para produtos de grandes marcas, eu costumo confiar nas duas informações: lista de ingredientes e tabela de composição nutricional. Para produtos de marcas menores, é bem comum a tabela de composição nutricional conter erros; mesmo assim, acredito que pelo menos a lista de ingredientes tende a apresentar os ingredientes que de fato estão contidos no produto.

      A possibilidade da indústria nos enganar em algum ponto sempre vai existir, mas no geral eu acredito que isso não aconteça. Mesmo assim existe um problema: as áreas "cinzentas" da legislação.

      Por exemplo, qualquer produto que possui menos de 0,5 g de algum macronutriente (carboidrato, proteína ou gordura), na porção determinada na tabela de composição nutricional, pode declarar na embalagem que possui 0 g ou 0% desse nutriente.

      O problema disso é que é o próprio produtor que determina a porção sugerida do seu produto. Então um biscoito recheado, por exemplo, mesmo contendo gordura hidrogenada na lista de ingredientes, pode declarar que tem 0% de gorduras trans. Desde que, na porção determinada pelo produtor, a quantidade de gorduras trans não passe 0,5 g (o que é bem tranquilo de se manipular).

      É por isso que muitos produtos contêm gordura hidrogenada em sua composição, incluindo a maioria dos chocolates no Brasil, e mesmo assim não vão dizer nada no rótulo -- ou vão afirmar que são 0% gorduras trans.

      A única forma de evitar mesmo é optando por alimentos que foram o mínimo possível modificados antes de chegar ao prato: comida de verdade.

      Excluir
  9. Um dos textos mais prudentes que eu já li sobre o tema,
    Irei compartilhar, obrigado.

    ResponderExcluir