quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

A ilusão do sal rosa do Himalaia




Como falei recentemente quando escrevi sobre a goji berry, de tempos em tempos surgem novos alimentos “milagrosos”, muitas vezes chamados de superalimentos.

A ironia é que literalmente nenhum desses já foi de fato demonstrado como um superalimento, e isso provavelmente não vai ocorrer. Além disso, como definir o que é um superalimento? Quais critérios utilizar para a classificação?

Independentemente disso, o fato de não existirem superalimentos não necessariamente implica na inexistência de alimentos que podem ser superiores a outros em conferir benefícios específicos à saúde de quem os consome. 


O sal rosa do Himalaia como superalimento

Com a alcunha de superalimento ou não, o sal rosa do Himalaia ganhou imensa popularidade nos últimos anos.

O seu grande diferencial em relação ao sal refinado (sal de mesa ou sal comum) seria justamente o fato de ele não ser refinado. As alegações são de que, por esse motivo, o sal rosa do Himalaia é, nutricionalmente falando, um ingrediente muito mais “rico” que o sal refinado.

Alguns dos supostos benefícios encontrados pela internet:
  • Auxilia na saúde vascular
  • Melhora a função respiratória
  • Reduz sinais de envelhecimento
  • Previne cãibras musculares
  • Fortalece os ossos
  • Reduz a pressão arterial

Esses  benefícios teoricamente valeriam não apenas para o sal rosa, mas também para os demais sais não refinados: negro, marinho, havaiano, defumado, flor de sal, cinza, grosso. (Para facilitar a leitura, daqui em diante vamos chamar todos os sais não refinados de sais integrais).

Como essas alegações nunca foram testadas diretamente testadas em estudos, elas simplesmente não podem ser consideradas como verdadeiras. Por isso, não precisamos entrar em detalhes sobre elas.

Porém, existe um argumento comumente utilizado por quem defende os sais integrais que vale a pena comentar:

“O sal rosa possui muito mais minerais que o sal refinado em sua composição”.

Será mesmo? Se sim, qual é a relevância disso?

Esse ponto foi discutido, inclusive, nos comentários do texto que escrevi sobre os “malefícios” do consumo de sódio. Entretanto, para expandir a discussão, vamos analisá-lo em mais detalhes abaixo.


Composição mineral dos diferentes tipos de sal

Felizmente, existe um ótimo estudo que verificou a composição mineral de 45 tipos diferentes de sal. A partir desses dados, é possível fazer uma comparação desses sais para verificar se realmente há alguma distinção importante entre suas composições. 

Considerando os 45 tipos de sal avaliados, ficaremos apenas com aqueles mais interessantes para a nossa análise, ou seja, aqueles mais facilmente encontrados para consumo: sal refinado, sal marinho*, sal grosso e sal rosa do Himalaia.


*O sal marinho escolhido, a partir das diversas opções de sal marinho do estudo, foi o que pode ser obtido a partir do Oceano Atlântico (litoral brasileiro).


Para facilitar a visualização, montei uma tabela com a concentração dos minerais avaliados pelo estudo: cálcio, potássio, magnésio, ferro, zinco e sódio. Além disso, coloquei, na última coluna, os valores de referência de ingestão (DRIs) — para mulheres jovens adultas* — de cada um desses nutrientes.


*Escolhi os valores para mulheres jovens adultas porque eles são iguais ou inferiores aos de homens, idosos ou gestantes; a única exceção foi o ferro, que possui valor de referência mais baixo para homens do que para mulheres (8 x 18 mg). Assim, essas escolhas foram determinadas para que houvesse a possibilidade de a ingestão desses minerais, a partir dos sais, pudesse ser minimamente importante pelo menos para o grupo populacional com as menores necessidades absolutas de minerais.


Todos os minerais abaixo estão representados em miligramas (mg) e referem-se à quantidade presente em 10 g de sal, que é próxima à média de ingestão diária da população brasileira:



(O valor de referência para o sódio não foi colocado porque ele não é importante).


É possível perceber, claramente, que o consumo de nenhum sal, nem mesmo o rosa do Himalaia, nem mesmo o azul de Urano, representará uma fonte expressiva de minerais — com exceção do sódio, é claro.

A concentração de minerais no sal rosa é bastante superior à dos demais sais? Sim, chegando a ser 300% superior para o cálcio e mais de 7400% superior para o magnésio, por exemplo, quando comparada à do sal refinado.

Mas de que adianta se, na prática, essas quantidades de minerais encontradas no sal rosa ainda são muito pequenas em relação às necessidades diárias? Nada.

Considerando nossas necessidades nutricionais, o mineral mais importante no sal rosa seria o ferro. Mesmo assim, a ingestão de 10 g/dia desse tipo de sal não seria capaz de suprir nem 5% das recomendações de ferro.

Além disso, diferentemente do que algumas pessoas dizem e do que alguns sites informam, o sal rosa do Himalaia não possui menor concentração de sódio quando comparado ao sal refinado.

E sódio à parte, nenhum sal será uma fonte minimamente importante de minerais.

Além desse artigo científico que analisamos, existe também um site em inglês que apresenta a concentração de todos os minerais que supostamente são encontrados no sal rosa. Porém, como o site não diz muito bem como esses dados foram obtidos, não é possível afirmar que essas informações são confiáveis. Mesmo assim, se alguém quiser confirmar que o sal rosa não se configura como uma fonte importante de nenhum desses nutrientes, basta comparar os minerais apresentados pelo site às necessidades nutricionais de cada mineral segundo as DRIs.


A questão do iodo

Na minha forma de ver, essa é a parte mais importante da discussão.

Os frutos do mar — e, em alguns casos, outros alimentos obtidos do mar, como as algas — são a única fonte realmente considerável de iodo na alimentação humana. E é por esse motivo que a maioria dos países ao redor do mundo segue a recomendação da Organização Mundial de Saúde de fortificação de iodo no sal refinado.

No Brasil, a fortificação é obrigatória, devendo o sal refinado conter entre 15 e 45 ppm de iodo (Anvisa - RDC nº 23, 24/04/2013). Isso equivale a concentrações entre 75 e 225 µg de iodo para uma pessoa que consome 5 g/dia de sal, ou entre 150 e 450 µg para quem ingere 10 g/dia* de sal.


*A quantidade de 10 g/dia pode parecer alta, mas não é.


Em outras palavras, a fortificação obrigatória de iodo no Brasil, considerando a quantidade média de sal ingerida pela população (aproximadamente 12 g/dia), é suficiente para garantir uma ingestão adequada desse nutriente para praticamente todas as pessoas, cujas necessidades variam de 90 μg/dia para crianças até 200 μg para mulheres gestantes.

Por outro lado, não temos dados sobre a quantidade de iodo presente na maioria dos sais integrais. Sabemos, por exemplo, que a concentração de iodo no sal marinho é de aproximadamente 1,5 ppm, ou seja, 10 vezes (900%) inferior à quantidade mínima que deve estar contida no sal iodado.

Especificamente em relação ao sal rosa, não existem estudos que avaliaram sua concentração de iodo, e por isso ela é desconhecida; de repente ela até pode ser suficiente para suprir as nossas necessidades desse mineral, assim como também pode não ser. Porém, se considerarmos o sal marinho como parâmetro, existe uma grande possibilidade que os demais sais integrais não apresentem quantidades adequadas de iodo para prevenir os problemas relacionados à deficiência desse nutriente.

Como não temos conhecimento sobre a quantidade de iodo no sal rosa e nos demais sais integrais, por que arriscar?


A redução no consumo de sal refinado não traz benefícios

Enquanto o sal refinado possui aditivos em sua composição, como dióxido de silício e ferrocianeto de sódio, os sais integrais estão isentos disso. Esse é um dos principais argumentos utilizados por quem defende o consumo do sal rosa, por exemplo.

O dióxido de silício é um ingrediente que provavelmente não vai causar problema algum à nossa saúde, devido às suas características químicas. O ferrocianeto, por outro lado, talvez até poderia trazer prejuízos, por causa da presença do cianeto; porém, estudos em humanos já verificaram que quantidades relativamente elevadas de ferrocianeto parecem não causar toxicidade.

Mesmo assim, existem formas até mais fáceis de verificar se o sal refinado, assim como os seus aditivos, poderiam causar problemas:


1) Dividir um número X de pessoas em pelo menos dois grupos, onde um deles ingere uma quantidade de sal superior à média consumida pela população.

2) Ou, em vez dessa primeira possibilidade, oferecer a um dos grupos uma quantidade de sal inferior à média consumida pela população.


O primeiro cenário seria considerado como antiético, e por isso seria mais fácil trabalhar com o segundo. E não é que isso já foi feito?

O grupo de revisões sistemáticas mais importante do mundo, a Cochrane Collaboration, publicou em 2014 a última meta-análise de ensaios clínicos randomizados que avaliou o efeito da redução no consumo de sal sobre a saúde, em pacientes com e sem hipertensão.

E os resultados do estudo foram bem claros: o menor consumo de sódio não reduziu a mortalidade por todas as causas e também não reduziu especificamente a mortalidade cardiovascular. (Esse e outros estudos foram comentados em mais detalhes no último texto sobre o sal publicado aqui no blog).

A partir disso, é possível especular que a maior ou menor ingestão dos aditivos presentes no sal refinado também não influencia, nem de forma positiva e nem de forma negativa, a saúde da população — uma vez que consumir mais ou menos sal parece não impactar na saúde geral ou cardiovascular.

Mesmo assim, quem quiser realmente se precaver pode optar uma alternativa de sal que não contém aditivos, como esse aqui: sal Cisne líquido (agradecimento ao leitor Ulisses pela dica). Podem existir outras marcas que seguem a mesma linha, mas desconheço. 


Considerações finais

Quem, ainda sim, quiser optar pelo sal rosa do Himalaia ou por qualquer outra variedade de sal integral, vá em frente.

Porém, a partir dos dados que temos disponíveis, fica evidente que, do ponto de vista de nutrientes, os sais integrais não apresentam nenhuma vantagem em relação ao sal refinado, simplesmente porque a concentração de minerais em qualquer tipo de sal (refinado ou não) é muito pequena quando comparada às nossas necessidades nutricionais.

Além disso, é muito importante ter em mente que desconhecemos a quantidade de iodo do sal rosa e dos demais sais integrais, e que, por isso, as chances de se desenvolverem quadros de insuficiência ou deficiência de iodo podem ser maiores.

Por fim, a probabilidade dos aditivos presentes no sal refinado causarem problemas é mínima, e por isso esse não é um argumento que, na minha opinião, é muito relevante na hora de decidirmos entre o consumo dos diferentes tipos de sal.


Um recado pós-escrito (18/10/16)

Vale ressaltar que esse texto não é uma crítica ao sal rosa do Himalaia com alimento ou ingrediente, e muito menos às pessoas que o utilizam. A crítica é destinada às alegações não embasadas que fazem a respeito do sal rosa.

Como pode ser percebido a partir do que foi discutido no texto, algumas alegações, como a da "superior" composição nutricional, já foram cientificamente testadas e refutadas (pelo menos até que surjam novas evidências). As demais nunca foram estudadas, e por isso também não podem ser consideradas como verdadeiras até que isso seja cientificamente demonstrado.

É possível que existam benefícios provenientes do consumo de sal rosa ou de outros sais não refinados? Sim, claro. Porém, isso só poderá ser afirmado a partir de evidências científicas. Se não há evidências, não podem haver afirmações nesse sentido

Caso algum leitor tenha conhecimento de evidências contrárias às apresentadas nesse texto, o espaço dos comentários está aberto para que essas informações sejam compartilhadas. Mas, por favor, não usem vídeos como argumentação sobre os benefícios do sal rosa, independentemente de qual seja a fonte, a não ser que o vídeo apresente claramente as referências utilizadas pela pessoa que defende o uso e os benefícios do sal rosa do Himalaia. 


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