quinta-feira, 31 de agosto de 2017

Sono: essencial para a composição corporal




Entre os fatores mais importantes quando falamos sobre saúde, o sono é provavelmente o mais subvalorizado. Sempre nos lembramos da alimentação e dos exercícios, mas nos esquecemos de quase tudo que foge a eles. Toda hora ouvimos sobre novas dietas e tipos de exercícios, mas ainda ouvimos muito pouco sobre a importância do sono — e, quando ouvimos, geralmente é de maneira superficial.

Felizmente, o cenário tem mudado um pouco. Mesmo que num ritmo devagar, a importância do sono tem sido cada vez mais reconhecida. Temos visto mais profissionais de saúde, por exemplo, perguntando sobre quantidade e qualidade do sono de seus pacientes. Além disso, houve nos últimos anos um aumento considerável nos estudos relacionados ao sono e à regulação do ciclo circadiano.

À medida que a ciência avança, de pouco em pouco vamos entendendo melhor como o sono influencia a saúde. E esse ganho de conhecimento na área tem sido um fator relevante para o reconhecimento do sono como um dos pilares de uma vida saudável. Mas, mesmo sendo importante, a ciência do sono é só uma parte dessa história. A verdade é que todos sabem que um sono de qualidade é fundamental, mesmo com um mundo gigantesco ainda a ser explorado pela ciência. Por experiência própria, por motivos variados, todos nós passamos por períodos de noites mal dormidas, e por isso sabemos o impacto negativo que o sono de baixa qualidade pode ter sobre nossa saúde e nosso bem-estar.

O conhecimento científico sobre o sono ajuda, mas existe um componente ainda mais fundamental: ter consciência sobre a importância de um sono de qualidade. Só damos a devida atenção ao sono quando começamos a perceber, na prática, como ele realmente afeta nossa saúde. Isso se assemelha ao que acontece com a alimentação em muitos casos. Enquanto somos jovens e o corpo consegue se adaptar a uma alimentação potencialmente prejudicial, muitas pessoas não dão tanto valor a uma dieta saudável. Mas, quando problemas relacionados à alimentação começam a aparecer — como acúmulo de gordura corporal, alterações metabólicas, doenças crônicas —, a consciência sobre a importância da alimentação normalmente começa a mudar.

O problema é que as consequências mais complicadas de um sono de baixa qualidade, assim como de uma alimentação ruim, muitas vezes demoram para aparecer. Além disso, em muitos casos os problemas que surgem podem parecer não ter relação alguma com o sono. Assim, temos um cenário com condições que dificultam que o sono seja devidamente reconhecido como um componente realmente importante na saúde — talvez o mais importante.

Mas o sono também ficou de lado nas últimas décadas por outro motivo. Há muito tempo, a maioria das pessoas dá mais valor à aparência física do que à saúde do corpo. Quando se fala sobre alimentação e exercícios, muitas pessoas querem saber como melhorar a composição corporal por questões estéticas, com a saúde como objetivo secundário (ou nem isso). É por isso que falamos muito sobre alimentação e atividade física: acreditamos que esses são os dois principais fatores que influenciam a gordura corporal, a massa muscular e a aparência física do corpo como um todo.

E é por esse mesmo motivo que esquecemos do sono: não sabemos, ou nem imaginamos, como o sono pode moldar nossa composição corporal. Apesar de subvalorizarmos o sono, até sabemos que ele influencia nossa saúde como um todo, mas ainda temos a tendência de achar, mesmo que inconscientemente, que o sono não é importante para a composição corporal. Será que não?


Associação entre sono e obesidade

O último trabalho científico de revisão sistemática a avaliar a relação entre sono e excesso de peso mostrou que existe uma associação clara entre as duas variáveis: crianças e adultos que dormem poucas horas de sono têm maior chance de apresentarem obesidade. Nessa análise, os autores consideraram “pouco sono” como < 10 horas/dia para as crianças (com idade até 10 anos, na maioria dos estudos) e < 5 horas/dia para os adultos.

Nesse caso, estamos falando apenas de estudos do tipo transversal, que são bem limitados em nos informar sobre a relação de causalidade entre as variáveis estudadas. Esses estudos só medem um único ponto no tempo, e determinam a associação entre as variáveis apenas naquele exato momento. Assim, mesmo que exista uma relação de causa e efeito entre as variáveis, não saberíamos se é a quantidade de sono reduzida que leva à obesidade ou se é o ganho de peso que prejudica o sono. Mas é claro que não podemos nos esquecer que também existe a possibilidade de essas associações serem meras coincidências. Por exemplo, se pessoas ansiosas comem muito e dormem pouco, as variáveis sono e obesidade podem estar relacionadas, mas nesse caso não seria uma relação de causalidade: a ansiedade seria um fator de confundimento, mediando a associação entre sonos e obesidade.

Mas, além dos estudos transversais, temos também os estudos de coorte para nos ajudar a entender essa relação. Novamente, a associação é bem clara e na mesma direção: prospectivamente, uma menor quantidade de sono está diretamente relacionada ao ganho de peso. Mais uma vez, tanto em crianças como em adultos. Além disso, a associação parece ser dose-dependente: quanto menos horas de sono, maior o risco de ganho de peso.

Esses resultados são mais expressivos, porque estamos falando de estudos de coorte, que levam em consideração o efeito do tempo ao estudar a relação entre nossas variáveis de interesse. Porém, justamente por se tratarem de estudos de coorte, que também são estudos observacionais, continuamos com a ressalva de que não temos base suficiente para afirmar que a dormir menos horas é uma causa do ganho de peso. Assim como para os estudos transversais, ou qualquer tipo de estudo observacional, outras variáveis poderiam estar mediando a associação entre sono, ganho de peso e obesidade.


Restrição de sono, gasto energético e ingestão calórica

Em ensaios clínicos, nos quais os grupos de participantes que passam pela privação de sono normalmente dormem 4 a 5 horas por noite, por um período de alguns dias ou algumas semanas, já foi demonstrado consistentemente que a restrição de sono não leva a uma redução no gasto energético. Na verdade, quando ocorrem alterações no gasto energético total, a tendência é de haver um leve aumento no gasto energético com a restrição de sono. Sendo assim, mesmo que a associação entre baixa quantidade de sono e ganho de peso seja uma relação de causalidade, a princípio podemos descartar mudanças no gasto energético como um fator relevante.

Por outro lado, as evidências são bem consistentes em mostrar que a privação de sono possui influência direta sobre a ingestão calórica. Quando colocados em situações de restrição de sono, os participantes dos estudos consomem, em média, 385 kcal/dia a mais do que o seu consumo habitual. Independentemente de outros fatores, essa maior ingestão energética merece destaque, porque é uma quantidade de calorias suficiente para levar ao acúmulo de gordura corporal no curto e médio prazo. Como exemplo disso, um estudo de 2013 mostrou que após 5 dias de privação do sono, com 5 horas dormidas por noite, os participantes apresentaram um ganho de peso de 0,8 kg justamente por causa da maior ingestão de calorias. E se o ganho de peso pode acontecer depois de apenas alguns dias de restrição de sono, fica a pergunta: qual seria o impacto de semanas, meses ou anos de noites mal dormidas, como é o caso para muitas e muitas pessoas ao redor do mundo?

Assim, embora o gasto energético praticamente não seja afetado pela privação de sono, sabemos que o consumo de calorias geralmente é. Se uma “desaceleração do metabolismo” não poderia explicar a associação que existe entre poucas horas de sono e ganho de peso, a maior ingestão calórica pode.


Sono e composição corporal além das calorias

Apesar de a energia que consumimos a partir dos alimentos certamente ser o fator mais importante na regulação do peso e da gordura corporal, as calorias não são o único determinante desses processos. O caso do jejum intermitente sem restrição calórica e o caso das calorias pela manhã são bons exemplos disso.

A regulação da composição corporal não depende somente das calorias que ingerimos porque o que conta não é apenas o quanto de energia entra ou sai do organismo, mas também como essa energia é percebida e utilizada pelo corpo. Para ficar um pouco mais claro, temos mais dois bons exemplos dessa questão.

O primeiro diz respeito aos exercícios. É verdade que os exercícios levam a um maior gasto energético durante sua prática, e é justamente por isso que as pessoas pensam neles como essenciais para o emagrecimento. Afinal, quanto mais energia gastamos ao longo do dia, maior é a perda de peso esperada. Mas a complexidade da nossa fisiologia vai muito além disso. Dependendo do tipo de atividade e de como essa atividade é praticada, o corpo pode se tornar um sistema mais eficiente do ponto de vista energético. Isso quer dizer que, com o tempo, o organismo pode passar a “desperdiçar” cada vez menos calorias, direcionando mais energia para a produção de ATP e dissipando menos energia na forma de calor. Nesse caso, devido ao aumento constante na demanda das células musculares por energia, o próprio exercício funcionaria como um estímulo adaptativo, sinalizando para que o corpo se torne mais eficiente no uso das calorias.

Além disso, temos o exemplo das dietas low-carb, cujos efeitos dependem do estado metabólico das pessoas que as consomem. Em indivíduos metabolicamente saudáveis, as dietas low-carb exercem basicamente o mesmo efeito que as dietas convencionais, mais ricas em carboidratos, sobre o peso e a saúde metabólica. Por outro lado, em pessoas com resistência à insulina ou síndrome metabólica, as dietas low-carb levam a um maior emagrecimento e a resultados mais positivos em parâmetros metabólicos, quando comparadas à maioria das outras dietas. Por quê? Basicamente porque a diferente proporção de nutrientes das dietas low-carb, especialmente a restrição de carboidratos junto à maior ingestão de proteínas, normalmente faz com que o corpo se sinta menos sobrecarregado do ponto de vista energético, saindo do modo “excesso de energia”.

Esses dois exemplos mostram como o estado metabólico do organismo é capaz de ditar como as calorias são processadas. E algo semelhante pode acontecer com o sono. Assim como acontece no ganho de peso, a privação de sono também influencia negativamente nosso estado metabólico. Olhando para os estudos conduzidos até hoje, sabemos, por exemplo, que 60 horas ou até mesmo 24 horas seguidas de restrição total de sono reduzem nossa sensibilidade à insulina. De maneira semelhante, duas semanas ou até mesmo uma semana de restrição parcial de sono, com cerca de 5 horas dormidas por noite, também levam ao aumento no grau de resistência à insulina. Na verdade, uma única noite de privação parcial de sono (4 horas dormidas) já é suficiente para causar esse tipo de alteração metabólica.

E esse não é um efeito transitório, porque pessoas que habitualmente dormem menos horas de sono possuem maior tendência de apresentar resistência à insulina, quando comparadas a pessoas que dormem mais de 6 horas por noite. Do outro lado, um estudo de 2015 mostrou que duas semanas de sono adequado controlado, mais seis semanas de orientação sobre como melhorar o sono, fez com que participantes com restrição crônica de sono apresentassem maior quantidade de horas dormidas, melhor qualidade do sono e melhora da sensibilidade à insulina. Isso mostra que as alterações metabólicas negativas causadas pela restrição de sono são reversíveis, e que com um sono adequado, depois de um tempo relativamente curto, o estado metabólico normal do corpo pode ser recuperado.

Mas, além do número de horas de sono, o momento em que dormimos também é um importante determinante do nosso estado metabólico. Mesmo dormindo uma quantidade de horas que seria suficiente para praticamente qualquer pessoa (> 8 horas/dia), o simples fato de dormirmos pela manhã, em vez de dormirmos durante a noite, pode alterar nossa sensibilidade à insulina e levar ao aumento na inflamação. E isso faz sentido, porque somos animais diurnos: evoluímos para dormir durante a noite; quando isso não acontece, o corpo percebe que estamos indo contra nossa própria natureza.

Assim, fica claro que o alinhamento do nosso ciclo circadiano, com uma quantidade de sono suficiente e com o momento certo para dormirmos (durante a noite), é um fator importante para a manutenção de um estado metabólico saudável. E é por isso que, quando acontecem alterações nesse equilíbrio, quando nosso estado metabólico é modificado por questões relacionadas ao sono, podemos imaginar que as calorias que ingerimos podem ser metabolizadas de formas diferentes do que normalmente acontece — assim como pode acontecer para dietas low-carb em pessoas com resistência à insulina.


Durma bem para emagrecer bem

Aqui está a cereja do bolo: um estudo que mostra como o sono pode afetar a composição corporal de maneira independente das calorias.

Em 2010, Nedeltcheva e colaboradores conduziram um estudo para avaliar como a privação de sono influencia o metabolismo energético e a perda de peso durante um período de restrição calórica. Para isso, recrutaram adultos com sobrepeso e obesidade, que relatavam dormir em entre 6,5 e 8,5 (média de 7,7) horas de sono por noite.

Cada um dos participantes passou pelos dois períodos do estudo, cada um com duração de duas semanas: 1) sono normal = 8,5 horas/noite; 2) restrição de sono = 5,5 horas/noite. A dieta foi individualizada para conter uma quantidade de calorias equivalente a 90% da taxa metabólica de repouso de cada pessoa. Além disso, a dieta foi estritamente controlada, com todos os alimentos pesados e ofertados pela equipe de pesquisa.

Além de muito bem controlado, o estudo contou com o uso de métodos padrão-ouro, como água duplamente marcada (discutida aqui) para o cálculo do gasto energético e DXA para as medidas de composição corporal. Do ponto de vista técnico e científico, esse foi um trabalho realmente muito bom, e até por isso foi publicado na Annals of Internal Medicine, uma revista científica bem importante.

A ingestão calórica média foi de 1450 kcal/dia, tanto nas duas semanas de 8,5 horas de sono/noite como nas duas semanas de 5,5 horas de sono/noite. Como resultado, a perda de peso foi semelhante em ambos os períodos: média de 3,0 kg.

Mas aqui vem a parte mais interessante. Durante o período de sono adequado, os participantes perderam 1,5 kg de gordura corporal e 1,4 kg de massa magra. Por outro lado, ao longo do período de restrição de sono, a perda de gordura corporal foi de apenas 0,6 kg, enquanto a perda de massa magra foi de 2,4 kg.




Além disso, nas duas semanas de restrição de sono, os participantes relataram mais fome, o que vai de acordo com o nível sanguíneo mais elevado de grelina — um dos hormônios que sinalizam fome no organismo — durante esse período. A maior sensação de fome a princípio não exerceu efeito direto sobre a alimentação dos indivíduos nesse estudo, justamente porque a alimentação foi totalmente controlada pelos pesquisadores. Porém, num contexto real do dia a dia dessas pessoas, a maior fome provavelmente prejudicaria ainda mais o processo de emagrecimento durante a restrição de sono.


Considerações finais

A baixa qualidade do sono não está apenas associada à obesidade, porque estudos clínicos mostram que existem fatores capazes de explicar uma relação de causalidade entre restrição de sono e ganho de peso. O exemplo mais claro, verificado em diversos estudos, é que a restrição de sono contribui diretamente para um maior consumo de calorias, numa quantidade suficiente para levar ao acúmulo de gordura corporal pelo menos no curto e médio prazo.

Além disso, como discutido no estudo de Nedeltcheva, a privação de sono parece influenciar negativamente a resposta do corpo à restrição energética, levando o organismo a potencialmente perder mais massa magra do que gordura corporal durante a perda de peso. E isso não só mostra que as calorias não são todas iguais, mas também que um sono em quantidade e qualidade suficientes parece realmente ser essencial para mantermos uma composição corporal adequada.

O efeito negativo que a restrição de sono possui sobre o maior consumo de calorias deveria ser suficiente para darmos mais importância ao sono. Se ainda não fazemos isso, saber que a privação de sono pode prejudicar a composição corporal, independentemente das calorias, é mais uma razão para termos mais consciência sobre a qualidade do nosso sono, além de ser mais uma bela demonstração da complexidade do corpo humano (e da vida como um todo).

Mas é claro que nem tudo está respondido. Como ainda estamos aprendendo, algumas dúvidas permanecem. Para mim, as principais são:

Se a restrição de sono é capaz de desfavorecer a perda de gordura corporal durante o processo de emagrecimento, como será que ela afeta pessoas que ingerem mais calorias do que suas necessidades energéticas? Será que essas pessoas estão acumulando ainda mais gordura corporal, numa quantidade que vai além do que as calorias consumidas a princípio forneceriam? A privação de sono generalizada — nesse mundo sempre preocupado em ter mais e fazer mais, sempre acelerado — poderia ajudar a explicar o aumento exponencial nas taxas de sobrepeso e obesidade visto nos últimos anos?