quinta-feira, 19 de setembro de 2019

Geleia real e olho seco




A síndrome do olho seco, ou simplesmente olho seco, tem se tornado cada vez mais comum. Há um bom tempo se sabe da relação entre idade e olho seco, na qual se observa uma maior prevalência do problema à medida que as pessoas envelhecem. Mas hoje também vemos uma maior presença de olho seco devido a pelo menos dois outros fatores: o uso generalizado de lentes de contato e o aumento considerável na utilização de aparelhos digitais.

Como o nome sugere, a síndrome do olho seco é uma condição caracterizada pela sensação de secura nos olhos, podendo ser acompanhada de outros sintomas como irritação, inflamação e fadiga ocular. Esses sintomas podem ser contínuos ou intermitentes, moderados ou severos, variando muito de caso a caso. Apesar de estar diretamente relacionada ao uso de aparelhos digitais e lentes de contato, e provavelmente ser desencadeada por esses fatores, não sabemos muito sobre como o problema realmente se desenvolve e qual a relevância de cada possível gatilho na patogênese da síndrome do olho seco.

Independentemente disso, o que acontece na síndrome é que os olhos perdem a capacidade de produzir a quantidade ideal de lágrimas ou as lágrimas produzidas evaporam mais rápido que o normal — ou as duas coisas juntas. Com uma quantidade menor de lágrimas nos olhos ou lágrimas que ficam nos olhos por menos tempo, o resultado final é o mesmo em todos os casos: secura devido à menor lubrificação da superfície ocular.

Na nutrição, poucos são os alimentos, nutrientes ou compostos bioativos que individualmente conseguem tratar problemas específicos de saúde. Isso acontece porque nosso corpo é um sistema extremamente complexo e bem regulado. Sendo assim, normalmente várias coisas precisam dar errado, mais ou menos ao mesmo tempo, para que o corpo apresente um problema. Quando isso acontece, não é um alimento ou nutriente específico que vai resolver o problema, uma vez que geralmente são vários pontos do sistema que estão desregulados. É por isso que precisamos pensar na alimentação como um todo, e não em alimentos ou nutrientes específicos, quando estamos falando de tratar ou prevenir um problema de saúde.

Essa é a regra. Mas todas as regras têm exceções.

No caso do olho seco, uma exceção pode ser a geleia real.

Em 2017, foi publicado o primeiro, e até agora único, estudo testando o efeito da suplementação de geleia real em pessoas que apresentam olho seco.

Os participantes do estudo foram mulheres e homens adultos, entre 20 e 60 anos. Todos referiam sintomas de olho seco, embora nem todos tivessem o diagnóstico confirmado. Isso acontece porque, além dos critérios subjetivos (sintomas), existem critérios objetivos (testes e exames) para que o diagnóstico seja feito.

O estudo contou com dois grupos experimentais: controle x geleia real. No grupo geleia real, cada pessoa consumia 6 tabletes por dia (1200 mg de geleia real por tablete), divididos em três doses diárias junto das principais refeições. No grupo controle, o protocolo foi exatamente o mesmo, trocando apenas os tabletes de geleia real por tabletes placebo.

A intervenção como um todo durou 8 semanas, mas mesmo após 4 semanas alguns resultados já haviam começado a aparecer no grupo que consumiu a geleia real. Tanto no BUT como no teste de Schirmer, os dois principais exames para se avaliar aqui, vemos resultados significativos não só do ponto de vista estatístico do estudo, mas também do ponto de vista clínico:




Isso fica ainda mais claro quando consideramos apenas os participantes que apresentaram teste de Schirmer ≤ 10 mm antes do início da intervenção. O teste de Schirmer mede a produção de lágrimas nos olhos, com valores mais baixos representando menor produção de lágrimas. Portanto, estamos falando das pessoas que apresentavam graus mais severos de olho seco. No estudo, foram justamente esses participantes que mais se beneficiaram da suplementação com geleia real. Em média, o resultado do teste de Schirmer foi de 5,6 mm antes do início do estudo; depois de 8 semanas, a média subiu para 14,7 mm.

Esse resultado é excepcional, porque um valor entre 10 e 15 mm no teste de Schirmer já pode ser considerados como normal. Ou seja, como um todo, esse subgrupo passou de “olho seco confirmado” para “olho com produção normal de lágrimas” depois de apenas 8 semanas de suplementação com geleia real.

E o mais interessante é que o estudo mostrou a evolução individual dos participantes:




Com exceção de dois pacientes que praticamente não responderam à suplementação, todos os outros tiveram melhoras significativas do ponto de vista clínico, com basicamente todos eles passando a apresentar valores superiores a 10 mm no teste de Schirmer.

E só para não deixar passar, uma palavrinha sobre o BUT. Esse é um exame que avalia a estabilidade do filme lacrimal, por meio do tempo que leva para a lágrima começar a se desfazer, ou “quebrar”, dentro do olho. A estabilidade lacrimal depende de vários fatores, sendo um deles a quantidade total de lágrimas que o olho produz. Como houve um crescimento expressivo na produção lacrimal após a suplementação de geleia real, visto pelo aumento nos valores do teste de Schirmer, é provável que o BUT também tenha apresentado melhoras devido a esse fato.

O que reforça isso é que, na porção do estudo que foi realizada em animais, na qual os pesquisadores puderam ir um pouco mais afundo no mecanismo pelo qual a geleia real é capaz de melhorar casos de olho seco, foi observado que parece existir um estímulo direto à secreção de lágrimas nas glândulas lacrimais. Isso seria capaz de explicar tanto o aumento nos valores do teste de Schirmer como o aumento nos valores de BUT.

E além dos benefícios clínicos, é importante citar que nenhum dos pacientes apresentou efeitos adversos ao longo do estudo, em nenhum dos dois grupo. Então, pelo menos no curto prazo, a quantidade administrada de geleia real parece ser segura e bem tolerada.

Considerando minha experiência, não me lembro de ter visto resultados tão expressivos como esses em estudos de suplementação. Com nenhum tipo de suplemento isolado. É claro que o ideal seria ter pelo menos alguns outros estudos para compararmos a esse, mas infelizmente não é o caso. Ainda assim, fica claro o potencial que a geleia real tem de beneficiar casos de olho seco.

Dito isso, vale mencionar duas ressalvas.

A primeira é a menor delas: a quantidade de geleia real suplementada foi bem considerável. Isso provavelmente não chega a ser um problema no sentido de ser difícil de ingerir ou de representar um risco à saúde. Mas talvez possa ser um empecilho financeiro para algumas pessoas. Porque suplementos de geleia real não são muito baratos, assim como é o caso de vários outros suplementos, principalmente na quantidade administrada nesse estudo.

Apesar disso, só foi testada uma dosagem de geleia real. Seria totalmente plausível imaginar que quantidades menores pudessem fazer o mesmo efeito. De forma semelhante, é possível supor que as pessoas que respondem bem à geleia real poderiam ingerir quantidades inferiores às utilizadas nesse estudo e ainda assim apresentarem o mesmo benefício. Essas questões podem ser testadas individualmente, para as pessoas que se interessarem em utilizar a geleia real em casos de olho seco.

A segunda ressalva é que não sabemos o efeito da suplementação no longo prazo. Como mencionei acima, os resultados do estudo indicam que o mecanismo de ação da geleia real sobre o olho seco seria por meio do estímulo à secreção de lágrimas nas glândulas lacrimais. Sendo assim, é possível imaginar que um estímulo constante, resultado de uma suplementação com duração de meses ou anos, poderia exaurir a capacidade de produção ou secreção das glândulas lacrimais. Isso, por sua vez, eventualmente poderia fazer com que a geleia real parasse de ter efeito no longo prazo. É claro que essa é só uma hipótese, mas algo que deve ser considerado.

E para finalizar, um relato da minha prática. Eu mesmo já testei o efeito da geleia real em pacientes e pude observar benefícios semelhantes aos apresentados no estudo. É verdade que se trata de uma amostra bem pequena, mas junto aos resultados do estudo tende a reforçar o potencial da geleia real em melhorar casos de olho seco.



quinta-feira, 29 de novembro de 2018

Comer ou não comer de 3 em 3 horas?




Recentemente percebi que esse é um tema cada vez menos comentado. Talvez porque a controvérsia tenha diminuído ao longo do tempo, ou talvez só porque surgiram coisas novas que são mais atrativas de se discutir.

Ainda assim, essa questão da frequência alimentar é um tema que, como vários outros na nutrição, traz dúvidas para muitas pessoas, justamente porque parece não haver consenso. Pessoas diferentes, incluindo profissionais de saúde, terão respostas diferentes para a mesma pergunta. Por isso, é um assunto que provavelmente está mais ou menos junto da história do ovo, que acaba virando piada porque os nutricionistas sempre mudam de opinião sobre as coisas que fazem bem e as que fazem mal para a saúde.

Mas antes de esclarecermos essa questão, que é bem mais simples do que parece, vale a pena começar com a seguinte pergunta: qual é a ideia por trás da teoria do “comer de 3 em 3 horas” ou das “6 refeições por dia”?

Ela se baseia principalmente em dois pilares:

1) Refeições mais frequentes aumentariam o gasto energético, pois o corpo estaria constantemente trabalhando para digerir, absorver e utilizar os nutrientes dos alimentos, o que facilitaria o emagrecimento.

2) Refeições mais frequentes ajudariam a reduzir a fome e aumentar a saciedade, justamente porque o organismos estaria recebendo nutrientes de forma constante e gradual, o que auxiliaria a perda de peso.

Mas o que a ciência diz?

Em 2014, foi publicado aquele que até hoje é o melhor estudo de revisão sobre o assunto. Sim, já é um estudo um pouco mais velhinho, mas ainda sim extremamente relevante — e mais do que suficiente para esclarecer de vez o que sabemos sobre frequência alimentar e emagrecimento.

O grande diferencial desse estudo é que ele incluiu não apenas os ensaios clínicos convencionais sobre o assunto, mas também os controlled feeding trials. Os controlled feeding trials são ensaios clínicos “especiais”, nos quais a ingestão alimentar é estritamente controlada para que seja praticamente nula a influência dos mais diversos fatores de confundimento que envolvem os estudos, os quais poderiam atrapalhar a interpretação dos resultados.

Na maioria dos ensaios clínicos, os participantes evidentemente recebem orientações específicas do que devem ou não devem consumir, de acordo com o que o estudo está se propondo a explorar. Mas, na prática, são os próprios indivíduos que escolhem e preparam suas refeições. Nos controlled feeding trials, por outro lado, as refeições são ofertadas pelos próprios pesquisadores, com o consumo alimentar acompanhado da forma mais controlada possível. Essa é uma forma de garantir que os efeitos observados no estudo serão exclusivamente decorrentes das intervenções sendo testadas, o que faz com que os controlled feeding trials sejam a melhor forma de se avaliar como uma dieta específica influencia os parâmetros que estão sendo estudados.

Considerando apenas os ensaios clínicos convencionais incluídos nesse estudo de revisão, foi observado que o emagrecimento ocorre independentemente da frequência alimentar. E isso foi corroborado por todos* os controlled feeding trials analisados, que chegaram exatamente às mesmas conclusões. Ou seja, isso significa que fazer duas, três, seis ou quantas refeições forem essencialmente não muda a forma como a alimentação afeta a perda de peso. E o mais interessante é que esses resultados foram observados com diversas ingestões calóricas, com diversas frequências alimentares e após diversos períodos de intervenção dietética.


*Na verdade, houve uma exceção. No trabalho de Stote et al. (2007), que se trata de um estudo de jejum intermitente, o emagrecimento foi maior para os participantes do grupo intervenção (20 horas diárias de jejum, 1 refeição por dia) do que para aqueles do grupo controle (3 refeições por dia). Mas esse estudo possui particularidades justamente por trabalhar com o jejum intermitente, e por isso não se encaixa muito bem quando a discussão é apenas sobre frequência alimentar. Para mais informações sobre esse estudo, sugiro a leitura desse texto.


Nas palavras dos autores, no próprio resumo do estudo: "No geral, a consistência dos resultados nulos, provenientes de ensaios clínicos que exploraram a influência da frequência alimentar sobre a perda de peso, sugere que a crença sobre o papel de uma maior frequência alimentar sobre o emagrecimento em pessoas adultas não é sustentada por evidências".

E para quem interessar, a principal tabela dessa revisão:




Resumindo: não tem por que se preocupar com frequência alimentar. É simples assim. Os resultados dos ensaios clínicos mostram, claramente, que o número de refeições realizadas ao longo do dia, quando considerado isoladamente, é um fator basicamente irrelevante se estamos falando de emagrecimento.

Mas vale lembrar que, quaisquer que sejam os estudos que discutimos, os resultados observados normalmente são generalizações. Em contextos individuais, levar em consideração o número de refeições do dia pode ser um fator importante. Isso vai depender das preferências individuais de cada pessoa, assim como das necessidades específicas que um indivíduo pode apresentar. Por exemplo, um homem idoso pode precisar de mais refeições ao longo do dia para garantir que suas necessidades proteicas sejam alcançadas. Por outro lado, uma mulher adulta jovem, com um trabalho que não permite muitas pausas ou cuja preferência é comer menos vezes ao longo do dia, vai estar bem com apenas três refeições diárias.

Se olharmos com atenção, é fácil enxergar as individualidades e respeitar as preferências pessoais. E assim podemos adequar o melhor da nutrição para cada um.



terça-feira, 22 de maio de 2018

Podcast: refluxo, colesterol, gordura saturada, sal e índice glicêmico




Recentemente participei do podcast do site Senhor Tanquinho. Falamos sobre quatro assuntos diferentes: refluxo; colesterol e gordura saturada; sal/sódio; índice glicêmico.

Parte dos assuntos foi escolhida por eles, enquanto parte foi escolhida por mim. Fiz questão de sugerir alguns tópicos justamente porque estão entre os que mais trazem dúvidas, já que costumo receber diversas perguntas e comentários sobre eles. Espero que, para os interessados, essa conversa possa esclarecer as principais confusões, incertezas e preocupações que existem sobre esses assuntos.

Com muita coisa para falar, a conversa acabou ficando em duas partes:

Parte 1 - Refluxo + Colesterol e Gordura Saturada
Parte 2 - Sal/Sódio + Índice Glicêmico

Grande parte das referências que embasaram os assuntos da primeira parte estão no link do próprio podcast. Para o tema do refluxo, como a discussão principal foi sobre como as dietas low-carb influenciam esse quadro clínico, as referências contidas no link são praticamente todos os estudos que já foram publicadas nessa área. O restante das referências são especialmente dedicadas ao tema colesterol e gordura saturada, porque, embora eu já tenha escrito alguns textos sobre o assunto, é um tópico bastante complexo e que merece ser tratado com mais detalhes.

Para os assuntos da segunda parte, os textos aqui do blog são suficientes como fonte de referência para os principais estudos que envolvem o foco discutido nos dois temas:

1) Sal: o que nunca lhe contaram sobre ele
2) A ilusão do sal rosa do Himalaia
3) A irrelevância do índice glicêmico

E para quaisquer esclarecimentos adicionais, sintam-se à vontade para perguntar.



terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

Vitamina K2, laticínios e saúde metabólica




Nos últimos anos, alguns estudos começaram a sugerir que existe uma relação entre os ossos e o metabolismo energético. Nesse caso, a relação seria mediada pela osteocalcina, uma proteína capaz de regular positivamente a densidade mineral óssea, direcionando e mantendo o cálcio no interior dos ossos.

A osteocalcina pode ser encontrada basicamente em duas formas: carboxilada ou descarboxilada. A carboxilação dessa proteína — ou seja, o acoplamento de grupos carbono à molécula — depende da ação da vitamina K, especialmente da vitamina K2*. E é justamente a forma carboxilada da osteocalcina que possui papel direto na regulação da densidade mineral óssea.

Quando existe uma deficiência de vitamina K2, o processo de carboxilação da osteocalcina não acontece como deveria. Com isso, a produção de moléculas carboxiladas de osteocalcina ainda acontece, mas boa parte delas acabam ficando descarboxiladas, com sua função prejudicada no que diz respeito ao metabolismo ósseo.

Apesar disso, nos primeiros estudos que exploraram o papel da vitamina K sobre a saúde metabólica, foi justamente a osteocalcina descarboxilada, mais prevalente quando há uma insuficiência de vitamina K2, que apareceu como um hormônio “do bem”. Até mesmo mais recentemente, pesquisadores continuam observando que, em estudos com animais, a osteocalcina descarboxilada seria um importante hormônio capaz de balancear o metabolismo energético, potencialmente prevenindo o ganho de peso e a síndrome metabólica.

Levando tudo isso em consideração, surge a pergunta: será que a suplementação com vitamina K2, assim como a ingestão de alimentos ricos nesse nutriente, ambos aumentando a concentração corporal de osteocalcina carboxilada, seria capaz de levar ao ganho de peso e à piora da saúde metabólica?


Vitamina K2 e saúde metabólica em humanos

Em 2011, veio o primeiro estudo a avaliar essa hipótese em humanos. Depois de 4 semanas, a suplementação com vitamina K2 (MK-4**, 30 mg/dia) levou a uma melhora na sensibilidade à insulina em adultos jovens e relativamente saudáveis.

No ano seguinte, em um ensaio clínico com duração de 3 anos, a suplementação com vitamina K2 (MK-4, 45 mg/dia) levou à manutenção do peso em mulheres pós-menopausa, enquanto que as participantes que suplementaram com placebo apresentaram ganho de peso. Já no começo de 2017, outro estudo de 3 anos, dessa vez com pessoas idosas, não mostrou diferenças na composição corporal entre aqueles que suplementaram ou não com vitamina K***.

Agora, no começo de 2018, mais um ensaio clínico com 3 anos de duração foi publicado. Nesse trabalho, a suplementação com vitamina K2 (MK-7**, 180 µg/dia) não levou a alterações significativas na composição corporal. Porém, nos participantes considerados como mais responsivos, com maior elevação nos níveis corporais de osteocalcina carboxilada, a suplementação com vitamina K2 levou à redução na gordura abdominal e na gordura visceral.

Olhando para esses estudos, uma coisa fica clara: a ingestão de vitamina K2, assim como o aumento na concentração corporal de osteocalcina carboxilada, não parece afetar negativamente a composição corporal ou a saúde metabólica em seres humanos. Inclusive, considerando os melhores cenários, o que se observa é um efeito positivo da suplementação de vitamina K2 nesses parâmetros, até agora com resultados mostrando melhora da sensibilidade à insulina, prevenção do ganho de peso e redução na gordura abdominal e visceral.

Isso tudo contraria o que foi observado nos estudos com animais até o momento, os quais sugerem que a osteocalcina descarboxilada, mais presente em casos de insuficiência de vitamina K2, seria um fator positivo para a manutenção da saúde metabólica. Esse é um exemplo claro de por que precisamos de estudos com pessoas para realmente entendermos como se dá a relação entre os nutrientes, os alimentos e a nossa fisiologia. Muitas vezes os resultados observados em estudos com células ou animais simplesmente não se aplicam ao que de fato acontece com seres humanos.

(Ainda assim, estudos mais recentes com animais estão mostrando o mesmo que os trabalhos com seres humanos, ou seja, que a vitamina K2, e por consequência a osteocalcina carboxilada, parece ser importante para uma saúde metabólica equilibrada.)


Laticínios e saúde metabólica

Nos últimos anos, muitos e muitos estudos têm mostrado que o consumo de laticínios está associado a uma boa saúde metabólica. Alguns exemplos:


Os resultados verificados nesses estudos de revisão são bem consistentes. Por isso, embora não tenhamos dados tão sólidos nos ensaios clínicos que exploram essa temática, é bem possível que a associação entre laticínios e saúde metabólica represente uma relação de causalidade.

Como existem muito mais evidências de estudos observacionais que exploram esse tema, ainda não é possível afirmar com tanta certeza que o consumo de leite e derivados realmente leva a um impacto direto sobre uma boa saúde metabólica. Mas suponhamos que exista, de fato, uma relação de causalidade. Qual seria a explicação?

Nos últimos anos, com cada vez mais estudos sugerindo efeitos metabólicos positivos a partir do consumo de leite e derivados, várias hipóteses surgiram. Algumas evidências apontam para um efeito das proteínas do leite em geral, outras apontam para um efeito de peptídeos específicos. No caso dos laticínios integrais, temos ainda o ácido linoleico conjugado (CLA) e os ácidos graxos de cadeia ímpar (ácido decapentaenoico e ácido decaheptaenoico) como possíveis mediadores dos efeitos benéficos sugeridos.

E, realmente, todos esses fatores podem estar envolvidos.

Mas por que não a vitamina K2?

Ninguém até agora tem falado sobre como a vitamina K2 poderia ser um fator alimentar importante para a manutenção de uma saúde metabólica adequada. Se esse for o caso, os laticínios também seriam. Especialmente os queijos, iogurtes e outros derivados fermentados (como o kefir), porque é durante a fermentação dos laticínios, por ação bacteriana, que a maior parte da vitamina K2 nesses alimentos é produzida.

Saber que os laticínios e a vitamina K2 contribuem para nossa saúde metabólica já é suficiente. Entender como isso acontece é secundário, mas não deixa de ser interessante.

E como é bem possível que perguntem, as melhores fontes de vitamina K2 são: nattō, fígado, queijos duros, queijos moles, ovos e carne escura de aves (coxa, por exemplo).



*A vitamina K1 é a forma que quase todo mundo se refere ao falar sobre vitamina K em geral, presente principalmente nos vegetais folhosos de cor verde. A vitamina K2, por outro lado, é mais difícil de encontrar nos alimentos e é encontrada principalmente em alimentos fermentados.

**MK-4 e MK-7 são as duas principais formas de vitamina K2 nos suplementos.

***No estudo de 2017, a suplementação foi com vitamina K1. Tendo em vista que a vitamina K2, e não K1, é o nutriente que tem papel crucial na carboxilação da osteocalcina, esse estudo acaba não sendo tão relevante para a nossa discussão. De qualquer forma, fica a menção.



terça-feira, 2 de janeiro de 2018

O mito das "frutas e verduras" — Parte 2




Na segunda parte dessa série, a ideia seria explorar a ciência que fala sobre como o consumo de frutas e verduras influencia os mais diversos desfechos de saúde, como saúde metabólica e cardiovascular. Mas esse assunto vai ficar para o próximo texto, porque alguns detalhes merecem ser esclarecidos antes.

O que vamos discutir agora não é algo exatamente novo, mas sim uma extensão do que foi discutido no último texto. Ou seja, um pouco mais de aprofundamento para que o assunto fique o mais claro possível.

Na seção de comentários da primeira parte, surgiu a seguinte dúvida:

Se não são as frutas e verduras, quais são os principais alimentos que contribuem para nossa ingestão de vitaminas e minerais?

Essa dúvida é interessante por dois motivos:

1) Dizer que as frutas e verduras não são nossas principais fontes de vitaminas e minerais não contradiz tudo que é sempre falado não só por nutricionistas, mas por todas as pessoas em geral? Estaria então todo mundo errado?

2) Considerando que grande parte da população apresenta baixo consumo de frutas e verduras, mesmo esses alimentos não necessariamente sendo os mais importantes em termos de micronutrientes, não estaria quase todo mundo deficiente em vitaminas e minerais?


Um breve momento de reflexão

Antes de entrarmos novamente em mais detalhes (numéricos) sobre como as frutas, verduras e outros alimentos contribuem para a nossa ingestão de vitaminas e minerais, vamos refletir um pouco sobre os pontos acima.

Vamos começar pelo segundo ponto.

Por si só ele já é bem interessante, porque reforça justamente o que foi discutido no primeiro texto. A lógica é a seguinte. Sabemos que o consumo de frutas e hortaliças é relativamente baixo por grande parte, possivelmente pela maioria, das pessoas. Se esses alimentos fossem nossas fontes mais importantes de micronutrientes, todo mundo que possui baixo consumo de frutas e verduras apresentaria sinais e sintomas claros de deficiências nutricionais. Mas não é isso que acontece. É claro que alguns indivíduos acabam sim desenvolvendo um certo grau de insuficiência em uma ou outra vitamina ou mineral, mas no geral a maioria das pessoas apresenta níveis corporais minimamente aceitáveis para esses nutrientes — caso contrário, como falei logo acima, sinais e sintomas mais evidentes se manifestariam.

Logo, a simples observação de que a maioria das pessoas não apresenta deficiências nutricionais virtualmente acaba com quaisquer dúvidas que poderíamos ter sobre a real importância das frutas e verduras como fontes de vitaminas e minerais. É claro que não são alimentos que precisam ser desconsiderados, porque todos os alimentos podem contribuir para nossa ingestão de micronutrientes. Mas é claro que as frutas e hortaliças não são nossas fontes mais importantes.

Agora o primeiro ponto.

A verdadeira contribuição das frutas, verduras e outros alimentos para nossa ingestão de vitaminas e minerais vai ficar ainda mais clara logo abaixo. Aqui eu só queria dizer o seguinte: a todo momento vivemos ou observamos contradições. Na ciência, isso talvez seja ainda mais comum. As contradições só surgem quando nos apegamos às nossas certezas. Se estivermos abertos ao desconhecido, não vai haver contradições, apenas novas informações.

Além disso, somos muito precipitados e temos a tendência de ficarmos cegos pelos nossos próprios vieses. É bem provável que a história de que as frutas e verduras são nossas principais fontes de vitaminas e minerais tenha surgido do fato de que são alimentos que possuem baixo valor calórico, e também por serem alimentos coloridos e tradicionalmente considerados como saudáveis. Quando começamos a ver aspectos bons em alguma coisa, automaticamente temos a tendência de enxergar ainda mais pontos positivos. Se temos a percepção de que determinados alimentos são saudáveis, geralmente vamos achar que eles são nutricionalmente ricos.

Então por que ninguém questiona esse ponto sobre a concentração de micronutrientes em frutas e verduras? Provavelmente por conveniência. Conveniência no sentido de que é difícil ver algum problema nessa história. Muito pelo contrário: como a maioria das pessoas e dos profissionais já enxergam as frutas e verduras como os alimentos mais saudáveis entre todos, considerar que elas são nossas principais fontes de vitaminas e minerais é só mais uma vantagem desses alimentos que são vistos como perfeitos em quase todos os aspectos.

Dito isso, vamos à parte que interessa.


Um exemplo mais concreto

Para responder à pergunta de quais são os alimentos que mais contribuem para a nossa ingestão de vitaminas e minerais, montei um cardápio simples, levando em consideração alimentos comuns da alimentação brasileira.

Abaixo, o cardápio com 5 refeições. Basta clicar na imagem para ampliá-la:




Traduzindo:

Café da manhã
- Mamão papaia (1/2 unidade)
- Pão branco (50 g)
- Queijo (30 g)
- Peito de peru (30 g)
- Leite (300 mL)

Lanche da manhã
- Uvas (150 g)

Almoço
- Arroz branco (150 g)
- Feijão (150 g)
- Contra-filé bovino (120 g)
- Alface (50 g)
- Tomate (50 g)
- Couve (50 g)
- Banana (1 unidade)

Lanche da tarde
- Ovos (2 unidades)
- Maçã (1 unidade)

Jantar
- Arroz branco (150 g)
- Feijão (150 g)
- Peito de frango (120 g)
- Cenoura (50 g)
- Beterraba (50 g)
- Brócolis (50 g)
- Laranja (1 unidade)


Agora, vamos ver o quanto as frutas e verduras, assim como o restante dos outros alimentos, contribuem para o total de vitaminas e minerais ingeridos. Não precisamos comparar alimento por alimento, mas apenas frutas e verduras contra a soma dos outros alimentos. Porque mais importante do que responder “qual alimento contribui mais?” é responder “as frutas e verduras são mesmo os alimentos que mais contribuem para nossa ingestão de micronutrientes?”.

Vitaminas:



Minerais:



Se considerarmos apenas as carnes (bovina e de frango) e o feijão, ainda assim as frutas e hortaliças não chegam nem perto do valor nutricional. Das 22 vitaminas e minerais avaliados, o “placar” final fica 14 x 7 para as carnes e o feijão — com empate no manganês, por isso a soma 14+7 = 21 em vez de 22. Esses três alimentos levam a melhor em: vitamina B1, vitamina B2, vitamina B3, vitamina B5, piridoxina (vitamina B6), vitamina B12, folato, cobre, ferro, magnésio, fósforo, selênio e zinco. Apenas 3 alimentos (540 g de comida) contra 11 frutas e verduras (> 1 kg de comida).

Como disse no texto anterior, quando contrastamos peso por peso, as frutas e hortaliças já não levam vantagem quando comparadas a alimentos de outros grupos alimentares. Além disso, elas muitas vezes são consumidas em quantidades inferiores às de vários outros alimentos, o que leva a uma contribuição final ainda menor por parte das frutas e verduras para o total de micronutrientes ingeridos. Não tem muito segredo.

E vale mencionar que, no exemplo acima, considerei 300 g de verduras e mais 4 porções de frutas ao longo de um dia. Isso talvez represente ou chegue perto do que algumas pessoas consomem, mas certamente está consideravelmente acima do que grande parte da população, talvez a maioria, costuma ingerir. Se levarmos em consideração esse último cenário, a dieta utilizada como exemplo estaria tranquilamente superestimando a quantidade de micronutrientes que muita gente obtém a partir das frutas e verduras.

E no caso de pessoas que consomem mais frutas e hortaliças?

Podemos dobrar as quantidades desses dois grupos alimentares, na dieta exemplificada, para ver o que acontece com as vitaminas e minerais:



Mesmo com uma quantidade diária bem elevada (> 2 kg de comida), consumida por pouquíssimas pessoas Brasil e mundo afora, as frutas e verduras ainda assim corresponderam à menor parcela das vitaminas e dos minerais.


Fim do interlúdio

Mais uma vez, é importante deixar claro que o fato de não serem as nossas principais fontes de vitaminas e minerais não faz com que as frutas e verduras sejam alimentos piores que os demais. Elas só estão longe de serem a forma mais eficaz ou eficiente de obtenção desses nutrientes. Só isso.

Todos os alimentos têm seu valor, e por isso não devemos considerar que uns são melhores que os outros. Eles são simplesmente diferentes. E, sendo diferentes, alguns vão ser melhores do que outros em alguns aspectos e vice-versa. Como não podemos atribuir “pesos” diferentes para as mais diversas características dos alimentos, de nada adianta ficar afirmando que uns são melhores que os outros.

Se formos falar de benefícios, podemos nos lembrar que as frutas, por exemplo, não apenas não levam ao ganho de peso como podem contribuir com o emagrecimento. E o mesmo vale para as hortaliças: o simples fato de serem alimentos com baixa densidade energética pode ser um fator importante para ajudar pessoas que buscam a perda de peso. É claro que as calorias não são tudo, mas são sempre uma parte importante quando falamos de regulação do peso. E as frutas e verduras têm seu valor nesse ponto.

Sem contar outras características da composição desses alimentos que potencialmente afetam diversos aspectos da saúde humana. Mas essa discussão fica para o próximo texto da série.

A quem interessar, o site que usei para contabilizar as vitaminas e os minerais presentes nos alimentos foi o Cronometer.


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segunda-feira, 27 de novembro de 2017

O mito das "frutas e verduras" — Parte 1




Todo mundo sabe que comer frutas e verduras* é importante, certo? Mas por quê? O que torna esses alimentos diferentes dos outros? O que tem de especial neles? Por que temos a impressão de que eles são, talvez, os grupos mais importantes? Por que costumam ser mais lembrados que os demais?


*Tecnicamente, na Nutrição, o termo correto é hortaliças. Mas a maioria das pessoas fala verduras em vez de hortaliças. Nesse texto, vou usar as duas formas, mas sempre com o mesmo significado: alimentos vegetais que não são cereais, leguminosas, frutas, raízes, sementes ou oleaginosas — o que sobra são as hortaliças. E apesar de hortaliças ser o termo tecnicamente adequado, vai dizer que falar “frutas e verduras” não soa melhor do que “frutas e hortaliças”?


Essas perguntas talvez tenham várias respostas, mas acredito que uma delas resume quase tudo o que acreditamos sobre as frutas e verduras: elas são fontes importantes de vitaminas e minerais. Muitas pessoas não gostam, mas comem. Muitas pessoas não fariam questão, mas comem. Como explicar isso? Talvez a única resposta plausível seja justamente essa de que as frutas e verduras são as nossas melhores fontes de vitaminas e minerais. Se não temos muita escolha quando o assunto é a ingestão desses nutrientes tão importantes, então “tem que comer!”.

Tecnicamente falando, vitaminas e minerais compõem o grupo que chamamos de micronutrientes. O “micro” não é porque vitaminas e minerais têm um tamanho pequeno, mas porque são nutrientes que precisam ser ingeridos em quantidades bem menores que os macronutrientes (carboidratos, proteínas e gorduras).

No dia a dia, costumamos falar mais sobre macronutrientes do que sobre micronutrientes. Seu amigo provavelmente nunca perguntou quantos miligramas de vitamina B3 ou zinco sua dieta tem, mas já deve ter perguntado quanto tem de carboidrato, gordura ou proteína. Apesar disso, ainda temos a tendência de considerar os micronutrientes mais importantes do que os macronutrientes. Quase ninguém se preocupa em ingerir quantidades insuficientes de carboidratos, proteínas ou gorduras, mas quase todo mundo já se perguntou se poderia estar com alguma deficiência de vitaminas ou minerais.

Além da ideia das frutas e verduras como fontes mais do que importantes de micronutrientes, existe outro ponto importante nessa história: as calorias. As frutas possuem baixa densidade calórica; as verduras têm uma densidade energética menor ainda. Isso significa que grandes quantidades (em peso) desses alimentos geralmente não apresentam um valor energético elevado. Poderia existir algo melhor do que consumir esses alimentos tão ricos em vitamina e minerais e, ainda assim, uma baixa quantidade de calorias? É quase um sonho, para pacientes e nutricionistas.

E talvez fique apenas no quase. Porque a realidade sobre a riqueza de micronutrientes nas frutas e verduras é um pouco, ou até muito, diferente do que quase todas as pessoas — quase todas mesmo, incluindo profissionais — acredita.


Densidade energética x Densidade nutricional

Mais acima mencionei a densidade energética, que nada mais é do que a concentração de calorias de um alimento em uma determinada quantidade. Para compararmos a densidade energética de dois alimentos diferentes, temos que usar a mesma quantidade (em peso) para eles.

Por exemplo, podemos comparar 100 g de abacate contra 100 g de um biscoito. Nessa quantidade, o abacate normalmente contém entre 100 e 150 kcal. Por outro lado, biscoitos podem conter entre 300 e 500 kcal. Dessa forma, uma vez que claramente contêm mais calorias numa mesma quantidade, podemos afirmar que os biscoitos possuem uma densidade energética superior à do abacate.

Além da densidade energética, temos também a densidade nutricional. Como o nome sugere, esse conceito está relacionado à concentração de nutrientes (micronutrientes) presente em determinada quantidade de um alimento.

A densidade nutricional é mais complexa do que a densidade energética, porque são inúmeras vitaminas e minerais que vão influenciar o quanto um alimento é nutricionalmente denso ou não. Na medida em que a densidade energética leva em consideração apenas o valor energético e o peso do alimento, temos um cálculo fácil que permite comparações simples e diretas entre os alimentos. Por outro lado, como temos dezenas de vitaminas e minerais quando falamos de densidade nutricional, comparar diferentes alimentos às vezes é difícil.

Mas nem sempre é difícil, mesmo quando não fazemos nenhum cálculo específico para a densidade nutricional. Utilizando o exemplo anterior, a comparação é bem simples. Se olharmos para cada um dos micronutrientes do abacate e de um biscoito, numa mesma porção de cada alimento (100 g, por exemplo), vamos ver que o abacate é mais rico que o biscoito na maioria das vitaminas e minerais — a não ser que estejamos falando de um biscoito adicionado de vitaminas e minerais, mas essa é outra história. Por isso, nesse caso fica fácil afirmar que o abacate é um alimento nutricionalmente mais rico, ou seja, com maior densidade nutricional, que os biscoitos.

As dificuldades podem começar a surgir quando comparamos dois ou mais alimentos de verdade. Por exemplo, como comparar o abacate a outra fruta? E como compará-lo às nozes e castanhas, já que o abacate, do ponto de vista nutricional, se assemelha mais às oleaginosas do que às frutas? E a comparação com outros alimentos de outros grupos alimentares?

E se os dois alimentos comparados forem semelhantes, mas um é mais rico na vitamina A e no mineral B, enquanto o outro é mais rico na vitamina C e no mineral D? Devemos atribuir "pesos" diferentes para nutrientes diferentes, a fim de determinarmos se um alimento é nutricionalmente superior ao outro? Por isso as respostas nem sempre são simples, até porque normalmente dependem do contexto e de uma série de outros fatores.

Até existem definições técnicas e “oficiais” de como podemos calcular a densidade nutricional dos alimentos, justamente como uma tentativa de se estabelecer os "melhores" e os "piores" alimentos que poderiam compor nossa alimentação. O pesquisador Adam Drewnowski, da Universidade de Washington, provavelmente é o principal nome nessa área. Particularmente não concordo com todos os critérios que são utilizados para classificar os alimentos de acordo com suas densidades nutricionais, até porque os pesquisadores costumam atribuir “pesos” diferentes para cada nutriente, mas esses estudos talvez tenham certo potencial. Para quem se interessar, duas sugestões de estudos para leitura:

- Concept of a nutritious food: toward a nutrient density score.
- Nutrient density: principles and evaluation tools.


Os mais ricos em vitaminas e minerais?

Aqui não vamos calcular valores específicos de densidade nutricional dos alimentos, até porque isso não é necessário. Para o nosso objetivo, que é entender o quanto as frutas e verduras são ricas em micronutrientes, simplesmente olhar para as quantidades desses nutrientes é suficiente.

Mas vamos analisar apenas as vitaminas, não os minerais. Porque algumas variáveis, como o solo no qual os alimentos são cultivados, podem fazer com a concentração de minerais varie consideravelmente, principalmente no caso dos alimentos de origem vegetal. Por isso, e também para as comparações ficarem mais simples e não muito exaustivas, vamos focar nas vitaminas.

Para cada grupo alimentar, os alimentos a seguir foram escolhidos pensando principalmente nas opções que os brasileiros tradicionalmente mais consomem. Optei por mostrar porções equivalentes a 200 g de cada alimento; quantidades menores do que isso (100 ou 50 g, por exemplo) fariam com que alguns gráficos ficassem muito pequenos, dificultando as comparações. Mais à frente vamos discutir por que comparar porções equivalente em peso, em vez de comparar os alimentos pelas calorias.

Primeiro, as frutas:






Para visualizar as imagens em tamanho real, basta clicar nelas.

O primeiro ponto a ser mencionado é que o grande mérito das frutas é a vitamina C. Quer garantir uma boa ingestão desse nutriente? Então inclua frutas na alimentação, porque muitas frutas são ricas em vitamina C. E é por isso que, por mais que a vitamina C seja tão importante quanto os outros micronutrientes, ela não é nem um pouco difícil de ser obtida pela alimentação.

As frutas amareladas, avermelhadas e alaranjadas, como mamão e goiaba, costumam apresentar boa quantidade de beta-caroteno e outros cartotenoides. As frutas e outros alimentos de origem vegetal não possuem vitamina A pré-formada em sua composição; esse nutriente é exclusivo dos alimentos de origem animal. Mesmo assim, o corpo consegue converter parte dos carotenoides em vitamina A, e por isso os gráficos mostram que as frutas e outros vegetais possuem vitamina A (mesmo que seja apenas "vitamina A", entre aspas mesmo).

E mais um ponto interessante: a diferença entre o abacate e as outras frutas. Primeiro, ele é rico em vitaminas diferentes. Segundo, ele possui uma concentração maior dos nutrientes nos quais ele é rico. Por exemplo, essa porção de abacate proporciona mais de 30% das nossas necessidades para vitamina E, vitamina K1** e vitamina B5. Tirando a vitamina C, que é de fácil obtenção, e a vitamina A, que é apenas "vitamina A", nenhuma outra dessas frutas comuns é particularmente rica em vitaminas específicas. A única exceção seria a piridoxina (vitamina B6) na banana.


**Existem duas formas desse nutriente: vitamina K1 e vitamina K2. As imagens mostram "vitamina K", mas se referem apenas à vitamina K1. A vitamina K1 está presente em grande quantidade em alguns vegetais, especialmente os de cor verde-escura. A vitamina K2, por sua vez, está presente principalmente em alimentos de origem animal (ovo, fígado) e alimentos fermentados (natto, queijo).


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Agora, as verduras:






De maneira semelhante ao que acontece com as frutas, as verduras alaranjadas, avermelhas e amareladas também costumam ser ricas em carotenoides. É por isso que vemos concentrações tão elevadas de "vitamina A" em todas as hortaliças acima, com exceção do tomate e da beterraba. "Mas o tomate não é vermelho?". Sim, mas a maioria dos carotenoides do tomate são do tipo que não pode ser convertido em vitamina A no corpo humano.

Como comentei acima, os vegetais verde-escuros costumam ser muito ricos em vitamina K, assim como mostram os gráficos. E o mesmo vale para o folato*** — com exceção da beterraba, os alimentos mais ricos nesse nutriente são todos verde-escuros.


***O termo folato se refere à forma de vitamina B9 naturalmente presente nos alimentos. Muitas pessoas chamam a vitamina B9 dos alimentos de ácido fólico, mas essa nomenclatura na verdade faz referência apenas à forma sintética dessa vitamina, encontrada na maioria dos suplementos.


E agora algumas perguntas. Além da “vitamina A” e da vitamina K1 (relativamente fáceis de serem obtidos, por serem tão presentes), além do folato, o que vemos de especial nas verduras em termos de micronutrientes? É verdade que os vegetais verde-escuros, incluídos propositalmente nessa análise para fazer contraste com as outras hortaliças, parecem se destacar um pouco mais. Mas tem alguma coisa que realmente chama a atenção, principalemnte se considerarmos apenas as verduras mais comuns (cenoura, alface, tomate e beterraba)?

Mais à frente, com os dados de outros grupos alimentares, podemos ter respostas um pouco mais claras para essas perguntas.


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Alimentos ricos em carboidratos:






Nos cereais, leguminosas, raízes e tubérculos, talvez a maioria das vitaminas estejam presentes numa concentração um pouco maior que nas frutas e verduras; se realmente for o caso, a diferença seria pequena. Nada que impressione muito.

Até temos alguns destaques: folato (vitamina B9) = feijão e lentilha; piridoxina (vitamina B6) = feijão, lentilha, batata inglesa e inhame; tiamina (vitamina B1) = feijão. Mas, ainda assim, nada que indique que cereais, leguminosas ou raízes e tubérculos são “superalimentos” do ponto de vista de micronutrientes.


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Alimentos de origem animal:






É claro que, assim como os vegetais, os alimentos de origem animal também não são ricos em todos os nutrientes. Mas veja o perfil geral. Olhe bem para a variedade e a quantidade de vitaminas que esses alimentos — especialmente o fígado, o ovo e as carnes — podem oferecer.

Não tem muito o que falar; as imagens falam por elas mesmas.

Uma sugestão para quem gosta de suplementos: por que não comer um pouco de fígado? (Sei que muita gente não gosta do sabor, mas a opção mais natural existe).

E já que estamos aqui, uma comparação especial:




Essa imagem diz tudo sobre por que não devemos consumir apenas a clara. A comparação é de 200 g de clara para 100 g de gema não só porque a gema é tão nutricionalmente superior que pode ser comparada com a metade da quantidade (o que é verdade), mas porque essa é mais ou menos a proporção (2:1) encontrada no ovo.

Do ponto de vista de micronutrientes, e até de outros nutrientes, a gema é incomparável à clara. É verdade que a clara tem seu valor, mas a gema é o coração do ovo.


Por que comparar em peso e não em calorias?

Algumas pessoas podem dizer: "Se compararmos os alimentos considerando as calorias, as frutas e verduras são mais ricas em vitaminas e minerais. Por exemplo, 200 kcal de frutas e verduras vão proporcionar mais micronutrientes do que 200 kcal de outros alimentos". Será?

Em alguns casos isso vai ser verdade. Caloria por caloria, as frutas e verduras — especialmente as verduras, as frutas nem tanto — provavelmente vão proporcionar mais vitaminas e minerais do que cereais, leguminosas, raízes, tubérculos e laticínios. Mas, mesmo comparando em termos de calorias, as frutas e verduras não necessariamente são nutricionalmente mais ricas do que ovos ou carnes (incluindo peixes e órgãos).

Vamos considerar uma porção de 500 g de frutas e verduras: laranja (150 g), maçã (150 g), alface (50 g), tomate (50 g) e cenoura (50 g). Juntos, esses alimentos proporcionam 184 kcal. Para termos o mesmo valor calórico, vamos comparar essas frutas e hortaliças a 90 g de carne bovina. Dessa vez, para termos uma análise mais completa, vamos usar valores de vitaminas e minerais na comparação:





Olhando apenas para as vitaminas, as frutas e verduras parecem levar vantagem. Mas devemos nos lembrar que a vitamina C e a "vitamina A" são facilmente obtidas porque estão amplamente distribuídas nos alimentos desses grupos; até mesmo pequenas porções de alimentos frutas e verduras normalmente são capazes de suprir nossas necessidades. Se não considerarmos essas duas vitaminas, é difícil dizer se as frutas e hortaliças são mais ricas que a carne bovina, até porque os nutrientes mais presentes em cada um deles são diferentes. E isso traz um ponto importante de ser lembrado: a importância, em termos de micronutrientes, de combinarmos alimentos de origem animal e de origem vegetal. E isso ajuda a explicar também porque somos uma espécie onívora.

Olhando para os minerais, as frutas e verduras parecem apresentar mais nutrientes em quantidades moderadas, mas a carne bovina parece proporcionar mais nutrientes em quantidades elevadas. Novamente, estamos falando de nutrientes diferentes. Nesse caso também não dá para afirmar que as frutas e hortaliças são melhores que as carnes, ou vice-versa; são diferentes, e até mesmo complementares, em termos de minerais.

Esse exemplo mostra como as comparações nem sempre são fáceis. De qualquer forma, o que eu queria trazer nessa discussão é que, mesmo quando comparamos em termos de calorias, as frutas e verduras não necessariamente levam vantagem em relação a outros alimentos. Mesmo se levassem, a diferença não seria grande o suficiente para considerarmos as frutas e verduras como os alimentos mais ricos em micronutrientes, enquanto deixamos um pouco de lado os outros grupos alimentares.

Mas a grande questão nem é essa. A verdade é que, por mais que as frutas e hortaliças até possam ser mais ricas do que alguns dos grupos alimentares quando comparamos caloria por caloria, a maioria das pessoas consome quantidades pequenas desses alimentos. Não é fácil encontrar uma pessoa que consome uma média de 500 g de frutas e verduras diariamente, mas é fácil achar pessoas que consomem 200 g ou mais de carne todos os dias. Assim como é relativamente fácil encontrar pessoas que consomem 200 g ou mais de cereais (arroz), leguminosas (feijão), ovos, raízes, tubérculos ou laticínios.

Se as pessoas consumissem 800 ou 1000 g de frutas e verduras por dia, poderíamos começar a pensar nas comparações em termos de calorias. Mas essa não é a nossa realidade.

Peso por peso, as frutas e verduras não contribuem tanto assim para a nossa ingestão de vitaminas e minerais. Em primeiro lugar, porque esses alimentos simplesmente não possuem quantidades tão elevadas da maioria dos micronutrientes. Em segundo lugar, porque, mesmo que fossem super concentradas em vitaminas e minerais, frutas e hortaliças são consumidas em quantidades relativamente baixas pela maioria das pessoas.


Considerações (semi)finais

Mesmo com dados e informações disponíveis, sabemos menos do que achamos que sabemos. Imagine o mundo de coisas que não sabemos; não só na nutrição, mas em tudo. Antes de acharmos que sabemos muito, temos que reconhecer que sabemos pouco. Esse caso das frutas e verduras é só um exemplo entre vários outros que existem.

A maior parte do que tinha para ser discutido foi falado ao longo do texto. Por isso, gostaria de resumir da seguinte forma: as frutas e verduras não são as principais fontes de vitaminas e minerais na alimentação da maioria das pessoas. Na verdade, considerando as porções e as variedades habitualmente consumidas desses alimentos, as frutas e hortaliças provavelmente são os grupos alimentares que menos contribuem para o total de vitaminas e minerais que boa parte (ou até a maioria) das pessoas no mundo ingere.

No entanto, se você tem uma opinião sobre algum ponto que eu possa ter deixado de considerar nessa discussão, e que talvez seja importante colocar em perspectiva, por favor compartilhe. A ideia aqui não é falar mal de frutas e hortaliças, mas sim mostrar que a realidade sobre a densidade nutricional dos alimentos é, no mínimo, consideravelmente diferente do que a maioria das pessoas acredita ser.

E não podemos esquecer: os alimentos são muito mais do que vitaminas e minerais, assim como são muito mais do que calorias, carboidratos, gorduras ou proteínas. A contribuição dos alimentos para o equilíbrio do organismo pode vir de várias formas diferentes, como pela presença de compostos considerados como antioxidantes e anti-inflamatórios.

Afinal, mesmo as frutas e hortaliças não sendo tão relevantes em micronutrientes, elas ainda assim são extremamente importantes para a saúde como um todo. Será?

Podemos ter tanta certeza?


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quinta-feira, 31 de agosto de 2017

Sono: essencial para a composição corporal




Entre os fatores mais importantes quando falamos sobre saúde, o sono é provavelmente o mais subvalorizado. Sempre nos lembramos da alimentação e dos exercícios, mas nos esquecemos de quase tudo que foge a eles. Toda hora ouvimos sobre novas dietas e tipos de exercícios, mas ainda ouvimos muito pouco sobre a importância do sono — e, quando ouvimos, geralmente é de maneira superficial.

Felizmente, o cenário tem mudado um pouco. Mesmo que num ritmo devagar, a importância do sono tem sido cada vez mais reconhecida. Temos visto mais profissionais de saúde, por exemplo, perguntando sobre quantidade e qualidade do sono de seus pacientes. Além disso, houve nos últimos anos um aumento considerável nos estudos relacionados ao sono e à regulação do ciclo circadiano.

À medida que a ciência avança, de pouco em pouco vamos entendendo melhor como o sono influencia a saúde. E esse ganho de conhecimento na área tem sido um fator relevante para o reconhecimento do sono como um dos pilares de uma vida saudável. Mas, mesmo sendo importante, a ciência do sono é só uma parte dessa história. A verdade é que todos sabem que um sono de qualidade é fundamental, mesmo com um mundo gigantesco ainda a ser explorado pela ciência. Por experiência própria, por motivos variados, todos nós passamos por períodos de noites mal dormidas, e por isso sabemos o impacto negativo que o sono de baixa qualidade pode ter sobre nossa saúde e nosso bem-estar.

O conhecimento científico sobre o sono ajuda, mas existe um componente ainda mais fundamental: ter consciência sobre a importância de um sono de qualidade. Só damos a devida atenção ao sono quando começamos a perceber, na prática, como ele realmente afeta nossa saúde. Isso se assemelha ao que acontece com a alimentação em muitos casos. Enquanto somos jovens e o corpo consegue se adaptar a uma alimentação potencialmente prejudicial, muitas pessoas não dão tanto valor a uma dieta saudável. Mas, quando problemas relacionados à alimentação começam a aparecer — como acúmulo de gordura corporal, alterações metabólicas, doenças crônicas —, a consciência sobre a importância da alimentação normalmente começa a mudar.

O problema é que as consequências mais complicadas de um sono de baixa qualidade, assim como de uma alimentação ruim, muitas vezes demoram para aparecer. Além disso, em muitos casos os problemas que surgem podem parecer não ter relação alguma com o sono. Assim, temos um cenário com condições que dificultam que o sono seja devidamente reconhecido como um componente realmente importante na saúde — talvez o mais importante.

Mas o sono também ficou de lado nas últimas décadas por outro motivo. Há muito tempo, a maioria das pessoas dá mais valor à aparência física do que à saúde do corpo. Quando se fala sobre alimentação e exercícios, muitas pessoas querem saber como melhorar a composição corporal por questões estéticas, com a saúde como objetivo secundário (ou nem isso). É por isso que falamos muito sobre alimentação e atividade física: acreditamos que esses são os dois principais fatores que influenciam a gordura corporal, a massa muscular e a aparência física do corpo como um todo.

E é por esse mesmo motivo que esquecemos do sono: não sabemos, ou nem imaginamos, como o sono pode moldar nossa composição corporal. Apesar de subvalorizarmos o sono, até sabemos que ele influencia nossa saúde como um todo, mas ainda temos a tendência de achar, mesmo que inconscientemente, que o sono não é importante para a composição corporal. Será que não?


Associação entre sono e obesidade

O último trabalho científico de revisão sistemática a avaliar a relação entre sono e excesso de peso mostrou que existe uma associação clara entre as duas variáveis: crianças e adultos que dormem poucas horas de sono têm maior chance de apresentarem obesidade. Nessa análise, os autores consideraram “pouco sono” como < 10 horas/dia para as crianças (com idade até 10 anos, na maioria dos estudos) e < 5 horas/dia para os adultos.

Nesse caso, estamos falando apenas de estudos do tipo transversal, que são bem limitados em nos informar sobre a relação de causalidade entre as variáveis estudadas. Esses estudos só medem um único ponto no tempo, e determinam a associação entre as variáveis apenas naquele exato momento. Assim, mesmo que exista uma relação de causa e efeito entre as variáveis, não saberíamos se é a quantidade de sono reduzida que leva à obesidade ou se é o ganho de peso que prejudica o sono. Mas é claro que não podemos nos esquecer que também existe a possibilidade de essas associações serem meras coincidências. Por exemplo, se pessoas ansiosas comem muito e dormem pouco, as variáveis sono e obesidade podem estar relacionadas, mas nesse caso não seria uma relação de causalidade: a ansiedade seria um fator de confundimento, mediando a associação entre sonos e obesidade.

Mas, além dos estudos transversais, temos também os estudos de coorte para nos ajudar a entender essa relação. Novamente, a associação é bem clara e na mesma direção: prospectivamente, uma menor quantidade de sono está diretamente relacionada ao ganho de peso. Mais uma vez, tanto em crianças como em adultos. Além disso, a associação parece ser dose-dependente: quanto menos horas de sono, maior o risco de ganho de peso.

Esses resultados são mais expressivos, porque estamos falando de estudos de coorte, que levam em consideração o efeito do tempo ao estudar a relação entre nossas variáveis de interesse. Porém, justamente por se tratarem de estudos de coorte, que também são estudos observacionais, continuamos com a ressalva de que não temos base suficiente para afirmar que a dormir menos horas é uma causa do ganho de peso. Assim como para os estudos transversais, ou qualquer tipo de estudo observacional, outras variáveis poderiam estar mediando a associação entre sono, ganho de peso e obesidade.


Restrição de sono, gasto energético e ingestão calórica

Em ensaios clínicos, nos quais os grupos de participantes que passam pela privação de sono normalmente dormem 4 a 5 horas por noite, por um período de alguns dias ou algumas semanas, já foi demonstrado consistentemente que a restrição de sono não leva a uma redução no gasto energético. Na verdade, quando ocorrem alterações no gasto energético total, a tendência é de haver um leve aumento no gasto energético com a restrição de sono. Sendo assim, mesmo que a associação entre baixa quantidade de sono e ganho de peso seja uma relação de causalidade, a princípio podemos descartar mudanças no gasto energético como um fator relevante.

Por outro lado, as evidências são bem consistentes em mostrar que a privação de sono possui influência direta sobre a ingestão calórica. Quando colocados em situações de restrição de sono, os participantes dos estudos consomem, em média, 385 kcal/dia a mais do que o seu consumo habitual. Independentemente de outros fatores, essa maior ingestão energética merece destaque, porque é uma quantidade de calorias suficiente para levar ao acúmulo de gordura corporal no curto e médio prazo. Como exemplo disso, um estudo de 2013 mostrou que após 5 dias de privação do sono, com 5 horas dormidas por noite, os participantes apresentaram um ganho de peso de 0,8 kg justamente por causa da maior ingestão de calorias. E se o ganho de peso pode acontecer depois de apenas alguns dias de restrição de sono, fica a pergunta: qual seria o impacto de semanas, meses ou anos de noites mal dormidas, como é o caso para muitas e muitas pessoas ao redor do mundo?

Assim, embora o gasto energético praticamente não seja afetado pela privação de sono, sabemos que o consumo de calorias geralmente é. Se uma “desaceleração do metabolismo” não poderia explicar a associação que existe entre poucas horas de sono e ganho de peso, a maior ingestão calórica pode.


Sono e composição corporal além das calorias

Apesar de a energia que consumimos a partir dos alimentos certamente ser o fator mais importante na regulação do peso e da gordura corporal, as calorias não são o único determinante desses processos. O caso do jejum intermitente sem restrição calórica e o caso das calorias pela manhã são bons exemplos disso.

A regulação da composição corporal não depende somente das calorias que ingerimos porque o que conta não é apenas o quanto de energia entra ou sai do organismo, mas também como essa energia é percebida e utilizada pelo corpo. Para ficar um pouco mais claro, temos mais dois bons exemplos dessa questão.

O primeiro diz respeito aos exercícios. É verdade que os exercícios levam a um maior gasto energético durante sua prática, e é justamente por isso que as pessoas pensam neles como essenciais para o emagrecimento. Afinal, quanto mais energia gastamos ao longo do dia, maior é a perda de peso esperada. Mas a complexidade da nossa fisiologia vai muito além disso. Dependendo do tipo de atividade e de como essa atividade é praticada, o corpo pode se tornar um sistema mais eficiente do ponto de vista energético. Isso quer dizer que, com o tempo, o organismo pode passar a “desperdiçar” cada vez menos calorias, direcionando mais energia para a produção de ATP e dissipando menos energia na forma de calor. Nesse caso, devido ao aumento constante na demanda das células musculares por energia, o próprio exercício funcionaria como um estímulo adaptativo, sinalizando para que o corpo se torne mais eficiente no uso das calorias.

Além disso, temos o exemplo das dietas low-carb, cujos efeitos dependem do estado metabólico das pessoas que as consomem. Em indivíduos metabolicamente saudáveis, as dietas low-carb exercem basicamente o mesmo efeito que as dietas convencionais, mais ricas em carboidratos, sobre o peso e a saúde metabólica. Por outro lado, em pessoas com resistência à insulina ou síndrome metabólica, as dietas low-carb levam a um maior emagrecimento e a resultados mais positivos em parâmetros metabólicos, quando comparadas à maioria das outras dietas. Por quê? Basicamente porque a diferente proporção de nutrientes das dietas low-carb, especialmente a restrição de carboidratos junto à maior ingestão de proteínas, normalmente faz com que o corpo se sinta menos sobrecarregado do ponto de vista energético, saindo do modo “excesso de energia”.

Esses dois exemplos mostram como o estado metabólico do organismo é capaz de ditar como as calorias são processadas. E algo semelhante pode acontecer com o sono. Assim como acontece no ganho de peso, a privação de sono também influencia negativamente nosso estado metabólico. Olhando para os estudos conduzidos até hoje, sabemos, por exemplo, que 60 horas ou até mesmo 24 horas seguidas de restrição total de sono reduzem nossa sensibilidade à insulina. De maneira semelhante, duas semanas ou até mesmo uma semana de restrição parcial de sono, com cerca de 5 horas dormidas por noite, também levam ao aumento no grau de resistência à insulina. Na verdade, uma única noite de privação parcial de sono (4 horas dormidas) já é suficiente para causar esse tipo de alteração metabólica.

E esse não é um efeito transitório, porque pessoas que habitualmente dormem menos horas de sono possuem maior tendência de apresentar resistência à insulina, quando comparadas a pessoas que dormem mais de 6 horas por noite. Do outro lado, um estudo de 2015 mostrou que duas semanas de sono adequado controlado, mais seis semanas de orientação sobre como melhorar o sono, fez com que participantes com restrição crônica de sono apresentassem maior quantidade de horas dormidas, melhor qualidade do sono e melhora da sensibilidade à insulina. Isso mostra que as alterações metabólicas negativas causadas pela restrição de sono são reversíveis, e que com um sono adequado, depois de um tempo relativamente curto, o estado metabólico normal do corpo pode ser recuperado.

Mas, além do número de horas de sono, o momento em que dormimos também é um importante determinante do nosso estado metabólico. Mesmo dormindo uma quantidade de horas que seria suficiente para praticamente qualquer pessoa (> 8 horas/dia), o simples fato de dormirmos pela manhã, em vez de dormirmos durante a noite, pode alterar nossa sensibilidade à insulina e levar ao aumento na inflamação. E isso faz sentido, porque somos animais diurnos: evoluímos para dormir durante a noite; quando isso não acontece, o corpo percebe que estamos indo contra nossa própria natureza.

Assim, fica claro que o alinhamento do nosso ciclo circadiano, com uma quantidade de sono suficiente e com o momento certo para dormirmos (durante a noite), é um fator importante para a manutenção de um estado metabólico saudável. E é por isso que, quando acontecem alterações nesse equilíbrio, quando nosso estado metabólico é modificado por questões relacionadas ao sono, podemos imaginar que as calorias que ingerimos podem ser metabolizadas de formas diferentes do que normalmente acontece — assim como pode acontecer para dietas low-carb em pessoas com resistência à insulina.


Durma bem para emagrecer bem

Aqui está a cereja do bolo: um estudo que mostra como o sono pode afetar a composição corporal de maneira independente das calorias.

Em 2010, Nedeltcheva e colaboradores conduziram um estudo para avaliar como a privação de sono influencia o metabolismo energético e a perda de peso durante um período de restrição calórica. Para isso, recrutaram adultos com sobrepeso e obesidade, que relatavam dormir em entre 6,5 e 8,5 (média de 7,7) horas de sono por noite.

Cada um dos participantes passou pelos dois períodos do estudo, cada um com duração de duas semanas: 1) sono normal = 8,5 horas/noite; 2) restrição de sono = 5,5 horas/noite. A dieta foi individualizada para conter uma quantidade de calorias equivalente a 90% da taxa metabólica de repouso de cada pessoa. Além disso, a dieta foi estritamente controlada, com todos os alimentos pesados e ofertados pela equipe de pesquisa.

Além de muito bem controlado, o estudo contou com o uso de métodos padrão-ouro, como água duplamente marcada (discutida aqui) para o cálculo do gasto energético e DXA para as medidas de composição corporal. Do ponto de vista técnico e científico, esse foi um trabalho realmente muito bom, e até por isso foi publicado na Annals of Internal Medicine, uma revista científica bem importante.

A ingestão calórica média foi de 1450 kcal/dia, tanto nas duas semanas de 8,5 horas de sono/noite como nas duas semanas de 5,5 horas de sono/noite. Como resultado, a perda de peso foi semelhante em ambos os períodos: média de 3,0 kg.

Mas aqui vem a parte mais interessante. Durante o período de sono adequado, os participantes perderam 1,5 kg de gordura corporal e 1,4 kg de massa magra. Por outro lado, ao longo do período de restrição de sono, a perda de gordura corporal foi de apenas 0,6 kg, enquanto a perda de massa magra foi de 2,4 kg.




Além disso, nas duas semanas de restrição de sono, os participantes relataram mais fome, o que vai de acordo com o nível sanguíneo mais elevado de grelina — um dos hormônios que sinalizam fome no organismo — durante esse período. A maior sensação de fome a princípio não exerceu efeito direto sobre a alimentação dos indivíduos nesse estudo, justamente porque a alimentação foi totalmente controlada pelos pesquisadores. Porém, num contexto real do dia a dia dessas pessoas, a maior fome provavelmente prejudicaria ainda mais o processo de emagrecimento durante a restrição de sono.


Considerações finais

A baixa qualidade do sono não está apenas associada à obesidade, porque estudos clínicos mostram que existem fatores capazes de explicar uma relação de causalidade entre restrição de sono e ganho de peso. O exemplo mais claro, verificado em diversos estudos, é que a restrição de sono contribui diretamente para um maior consumo de calorias, numa quantidade suficiente para levar ao acúmulo de gordura corporal pelo menos no curto e médio prazo.

Além disso, como discutido no estudo de Nedeltcheva, a privação de sono parece influenciar negativamente a resposta do corpo à restrição energética, levando o organismo a potencialmente perder mais massa magra do que gordura corporal durante a perda de peso. E isso não só mostra que as calorias não são todas iguais, mas também que um sono em quantidade e qualidade suficientes parece realmente ser essencial para mantermos uma composição corporal adequada.

O efeito negativo que a restrição de sono possui sobre o maior consumo de calorias deveria ser suficiente para darmos mais importância ao sono. Se ainda não fazemos isso, saber que a privação de sono pode prejudicar a composição corporal, independentemente das calorias, é mais uma razão para termos mais consciência sobre a qualidade do nosso sono, além de ser mais uma bela demonstração da complexidade do corpo humano (e da vida como um todo).

Mas é claro que nem tudo está respondido. Como ainda estamos aprendendo, algumas dúvidas permanecem. Para mim, as principais são:

Se a restrição de sono é capaz de desfavorecer a perda de gordura corporal durante o processo de emagrecimento, como será que ela afeta pessoas que ingerem mais calorias do que suas necessidades energéticas? Será que essas pessoas estão acumulando ainda mais gordura corporal, numa quantidade que vai além do que as calorias consumidas a princípio forneceriam? A privação de sono generalizada — nesse mundo sempre preocupado em ter mais e fazer mais, sempre acelerado — poderia ajudar a explicar o aumento exponencial nas taxas de sobrepeso e obesidade visto nos últimos anos?